Trouxeram até o Chefe uma mulher apanhada em adultério. Propuseram que fosse apedrejada (ou recebesse cacetadas) até a morte ou até ser desfigurada para que nunca mais despertasse, nos semelhantes (e nos diferentes também), desejos libidinosos.
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Reprodução/Redes Sociais |
O Chefe sentiu a rapaziada disposta ao massacre. A vida daquela mulher não tinha a menor importância. Ninguém estava nem aí para as condições que a levaram a pecar. Também ninguém questionou o que a teria levado a vacilar, mesmo sabendo que a pena capital seria aplicada em caso de flagrante.
Nada se apurou sobre eventuais promessas feitas ao ouvido da acusada pelo corresponsável pelo crime. Talvez palavras ternas e poéticas, oferecendo o carinho e o cuidado que o marido já não oferecia. Daí, o coração gritou mais alto, quis algo que nunca experimentara e partiu com tudo para a troca de secreções e lesões corporais desejadas.
Agora, sem advogado de defesa para assegurar os direitos cabíveis no rito sumário instalado, ali estava diante do Chefe, abandonada, desiludida e envergonhada, na iminência de uma dolorosa morte.
Embora não fosse deputado ou senador eleito pela comunidade, o Chefe surpreende a tropa, sedenta de sangue, proclamando de forma desconcertante: “Quem dentre vocês não tiver pecado que atire a primeira pedra ou dê a primeira cacetada!”
Para encurtar a história, uma vida foi poupada, em primeira instância, por motivos óbvios: ninguém ali era ficha limpa. Talvez tenham se perguntado: “Quem de nós, a bem da verdade, nunca pecou? Onde está o justo, o puro, o santo?”
Não demora muito e aparece um espírito de porco fazendo o que se espera de quem se especializa em complicar situações ou causar constrangimentos em certas ocasiões: “Data vênia, Chefe, cabe recurso!”
Depois de ouvir a sentença proferida em primeira instância, o próprio espírito de porco interpõe recurso oral, já de posse de uma banda de tijolo, mirando a testa da adúltera: “Eu nunca pequei. Logo...”.
– Peraí! – atalha um dos comparsas da alma suína puritana – Você esquece que anda cubando as partes daquela comadre casada, né mesmo? Toda vez que o marido dela sai para fazer entregas no asfalto, lá vem você com aquela desculpa de que anda chateado, insatisfeito com o que tem pra janta dentro de casa, só de olho no cofrinho e no decote da moça, né não?
– Opa! Sem maldade, só admirar as tatuagens não é pecado. Pra onde caminha a humanidade? – justifica-se, mas desiste do arremesso da banda de tijolo, temendo que os rumores ganhassem maior repercussão e afetassem sua amizade com o compadre.
Outro pega um porrete e se habilita a iniciar a execução sumária com novos e robustos argumentos:
– Nunca desejei a mulher do próximo, não matei nem roubei. Sou puro e casto como um cabritinho de dois dias.
– Por falar nisso – diz o Chefe, segurando-o pelo braço do porrete –, lembra de quando era moleque na Baixada e andou se servindo daquela cabra velha? Você, hein?! Dizia na orelha da coitada que ela merecia ganhar um presente, que só não lhe dava um par de havaianas porque os pés eram redondos...
– Eu... Eu era bem mais novo que o senhor, Chefe…
– Ah, é?! Se eu lhe mandasse comer bosta, você comeria? Larga o cacete, vai...
Surge um cara fortão, parecendo uma chave inglesa, pega um paralelepípedo e prepara-se para atirar na adúltera, falando grosso: “Eu nunca fiz nada disso. Não tenho o pecado da luxúria, nem da avareza, da gula, da inveja, da ira, da preguiça ou da arrogância. Pelo contrário, sempre fui humilde e generoso...
Silêncio geral. O próprio Chefe então toma a palavra:
– Mas mente que é uma beleza, hein?! Pensa que não sei?
– De quê, Chefe?
– Até vir trabalhar para mim, você colecionava combos de pecados capitais. Escapava da repartição no horário do expediente para beber e fornicar de cabaré em cabaré, exigindo descontos na tabela de preços dos serviços prestados. Isso quando não pendurava a conta no cheque pré-datado! Desista...
E pinta mais um justiceiro, de cassetete na mão, que também desiste ao ser devidamente lembrado de que, alguns anos antes, fora vítima de acusação “sem provas” (corrupção ativa e passiva, charlatanismo, emprego irregular de verba pública, falsificação de documentos, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, leniência e prevaricação), a qual o levaria ao corredor da morte se a sentença não tivesse sido anulada pelos tribunais superiores por conta de deslizes formais nas etapas preliminares do processo.
Quando a turba começa a se dissipar, de mansinho o ajudante-de-ordens consulta o Chefe:
– Que lição a gente pode tirar disso tudo, meu iluminado guru?
– Não se deve fazer julgamentos precipitados.
– Sei…
– Bem, se a tentação for grande, também não se deve resistir. Ela pode não voltar. Mas jogue o celular no vaso e dê descarga.
– Só?
– E negue, negue tudo. O povo esquece logo.