quarta-feira, 18 de dezembro de 2024

Ja é Natal, de novo!

Com suas canções, luzes e tradições, o Natal tem a estranha mania de apertar o botão de replay de nossas memórias mais profundas. Não importa o quanto o mundo mude, algo nele nos arrasta para cenas antigas, como um filme que insistimos em rever ou como quem folheia um álbum de fotografias buscando entender o que passou – e o que ainda está por vir.

Quem, como eu, já dobrou a esquina da boa esperança, tem o direito de contar e recontar histórias sem se preocupar com os céticos que duvidam que elas possam revelar novos ângulos. Sabe que o Natal é uma época que nos força a olhar para dentro, revisitando quem fomos, quem somos e quem ainda podemos ser. É um recomeço disfarçado de rotina, um lembrete de que a vida se move em círculos, mas sempre nos dá a chance de fazer diferente na volta seguinte.

Desde que habitávamos as cavernas, somos todos contadores de histórias. Primeiro, pintávamos as paredes. Depois, contávamos mentiras e verdades ao redor do fogo, escrevíamos livros que eram lidos até pelos mais jovens (prática incomum, ultimamente). Nossas histórias agora circulam pelas redes sociais ou ganham vida em telas de cinema. E poucas invenções conseguem tocar tão profundamente o coração humano quanto o cinema, essa mistura fascinante de imagens, sons e emoções que nos faz lidar com a realidade com os olhos da imaginação.

Confesso um arrependimento que vai me atormentar para o resto da vida: nunca fui cinéfilo, como meus amigos Antonio Fonseca e Luiz Andreola. Vi bem menos filmes do que gostaria e, nos últimos anos, me afastei ainda mais do escurinho das salas de cinema. Mas os poucos filmes que me marcaram seguem comigo, com histórias que me cobram para ser recontadas. Um deles, encontrado há 26 anos numa videolocadora (sim, elas existiram!), tornou-se parte do meu pequeno acervo: A Felicidade Não se Compra (It’s a Wonderful Life, 1946).

 


Dirigido por Frank Capra, o filme nasceu modesto, quase franciscano para os padrões de Hollywood, e parecia destinado a ser apenas mais uma fita esquecida nas prateleiras empoeiradas das locadoras. Mas, ironicamente, sua mensagem universal sobre propósito e impacto na vida comunitária atravessou gerações, consagrando-o como um clássico, mesmo que isso nunca tenha sido o plano inicial de seu diretor, financiador, produtor e um dos roteiristas.  

A primeira vez que o assisti, virou um divisor de águas no rio de minha vida. Dias depois, próximo do Natal de 1998, conversava com alguns colegas de trabalho sobre o que poderia ser feito na temporada seguinte junto a pequenas comunidades no interior pernambucano. Nos reunimos numa sala e projetei a história de George, um homem à beira do desespero, salvo por Clarence, um anjo em treinamento. Clarence, ansioso para ganhar suas asas, mostra a George como seria o mundo se ele nunca tivesse existido. 

O impacto foi impressionante: lágrimas discretas, reflexões compartilhadas e um renovado senso de propósito para enfrentar os desafios de 1999, o que me estimulou a replicar a iniciativa na virada do século, na Bahia, para onde fui transferido.

É impossível assistir ao filme e não se perguntar: qual é o impacto que deixamos na vida daqueles que cruzam o nosso caminho, seja nos momentos bons, nos ruins ou nos aparentemente insignificantes? Numa linguagem simples, mas poderosa, o filme sacode as camadas mais adormecidas de nossa consciência, convidando-nos a repensar relações, escolhas e até nossa conexão com o Planeta.

Como dizia Charles Chaplin, o importante no cinema não é a realidade em si, mas o que dela a imaginação pode extrair. Talvez por isso alguns filmes, vistos pela segunda, terceira ou enésima vez, continuam despertando novas camadas de percepção sobre o que há de melhor – e pior – em nós, como se guardassem segredos à espera do momento certo para serem revelados.

Já gostei de ganhar agendas no Natal. Eram como pequenas promessas encadernadas de que eu estaria aqui pelo menos até o próximo ano – e, quem sabe, um pouco mais, já que sempre vinham com janeiro do ano seguinte. Volto no tempo e vejo que 26 anos passaram em um esfregar de olhos.

A vida se move ligeira, e o Natal já está batendo à porta, de novo! Não é justo, mas é inútil discutir com o tempo. Talvez o truque esteja em aceitar que, como bons filmes, ela precisa ser revisitada. Porque é assim, revendo velhos filmes e memórias, que aprendemos a escrever novos roteiros e a dirigir os próximos capítulos de nossa própria história. 


quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O dilema de Epaminondas

Epaminondas – nome que já entrega a idade, pois ninguém mais batiza um filho assim – estava no dentista. Entre anestesia e limas especiais, o doutor percebeu que havia algo mais pesando sobre o paciente do que a remoção da polpa dentária infectada no tratamento de canal. Algo que ia além do físico e parecia afetar a alma.

 

Com a habilidade de quem já ouviu de tudo enquanto mexe em bocas alheias, o doutor quis saber o que estava acontecendo. Epaminondas relutou, mas abriu: Dolores, sua esposa, passara por uma delicada cirurgia na coluna e, entre as restrições do pós-operatório, estavam proibidos “pilates, caminhadas e ‘intimidades’ por 60 dias”. 

– Acho exagero – comentou o dentista, rindo – Nunca passei de três ou quatro noites seguidas, mas vá lá...

 

Recomendou paciência, bom senso e, se possível, a contratação de uma boa diarista para aliviar o fardo das tarefas domésticas. Também frisou a importância de seguir à risca as orientações do cirurgião, poupando Dolores de dores e tonturas.

 

Ilustração: Umor (Uilson Morais)


Brincalhão, o dentista resolveu entrar num campo espinhoso: o celibato forçado de Epaminondas. Desfiou um rosário de alternativas para a vida amorosa, mesmo sabendo que ele, reconhecido pelos amigos por sua fidelidade "constrangedora", jamais trocaria a tranquilidade do lar por aventuras de ocasião.

 

Ainda assim, insistiu. "Evite laxantes nos dias que antecedem qualquer saliência" – advertiu, rindo. "Uma tosse fora de hora pode comprometer até as restaurações antigas!". Depois sugeriu almofadas, “para poupar os joelhos” – uma recomendação que Epaminondas dispensou, sem entender a necessidade.


A mais inusitada foi anotar o nome da parceira na palma da mão. "Vai que você esquece com quem está no calor da luta" – completou, descarado.

 

Por fim, alertou: "Se você ouvir algum gemido, não se iluda, amigo: é deboche, sacanagem! E se conseguir chegar lá, nem cogite a prorrogação do jogo. Apesar de uma 'bengala química', o risco de torcicolo ou lombalgia é altíssimo".

 

Epaminondas ouvia tudo em silêncio, o rosto anestesiado permitindo apenas um esboço de sorriso sem graça. Ao se despedirem, o dentista ainda jogou a pá de cal: "Se der certo, espalhe entre os amigos. Mas, se der errado, deixa entre nós. Só aviso que sou péssimo pra guardar segredo".

 

Pensando naquelas ideias malucas, Epaminondas saiu confuso do consultório, mas logo balançou a cabeça, decidido: não trairia Dolores de forma alguma, depois de tanto tempo dividindo o leito conjugal. Como iria encarar as filhas e as netas?

 

No caminho de casa, o motor do carro falhou. Ele estacionou e abriu o capô, tentando identificar o problema. Enquanto mexia nas peças, sem saber exatamente o que procurava, a aliança escorregou de seu dedo sujo de óleo e desapareceu num bueiro. Epaminondas ficou parado, vendo o símbolo do compromisso sumir. Então, uma dúvida o atravessou, do cocuruto aos solados: seria um sinal? Destino ou acaso?

 

Mas a imagem de Dolores logo lhe veio à mente. No devaneio, ela o encarava no sofá:
– Tirou a aliança por quê? – ela perguntaria, com a sobrancelha arqueada.
– Não é o que você tá pensando...
– Ah, bom... Tá me chamando de otária?
– Foi o carro... Um cabo soltou... A aliança caiu no bueiro – explicaria, suando.
– No bueiro ou no ralo de um motel?

 

No devaneio, Dolores se levantou e encerrou a conversa como só ela sabia fazer: "Quem vai querer um velho teimoso e sem dinheiro feito você? Anda, vai tomar banho antes que a janta esfrie".

 

Debaixo do chuveiro, Epaminondas deixou a água levar a sujeira e, com ela, suas dúvidas. Nada era mais confortável do que a paz de olhar nos olhos de Dolores e não carregar o peso de decepcionar alguém com quem, há quatro décadas, divide o pão, o vinho e os boletos. 

 

A cena trouxe Epaminondas de volta à realidade. Riu sozinho, fechou o capô e deu partida no motor. Assim como ele, o carro roncou teimoso, aceitou a marcha e seguiu em frente, com alguns arranhões na lataria, mas sem precisar de maiores reparos. 

 

E disse a si mesmo: Dolores deve gostar dessa história, ou talvez nem dê importância, contanto que continuemos respeitando as restrições do pós-operatório. O grande desafio, a esta altura, é acordar sem dores adicionais. No corpo e na alma, claro.

 

Mais tarde, enquanto relatava a aventura a Dolores, omitiu a parte da aliança. Não por desonestidade, mas porque, naquele instante, a única verdade que importava era o sorriso tranquilo da esposa.

– E o carro? — perguntou ela.
– Anda meio teimoso, mas vai longe ainda. Igual a gente…

Dolores riu, ajeitando a almofada nas costas. E Epaminondas compreendeu que os sinais nem sempre vêm do universo. Às vezes, só lembram que, com ou sem aliança, a fidelidade é um pacto com algo maior: a opção de compartilhar a vida, com ganhos e perdas, até onde o motor aguentar.


 

quarta-feira, 4 de dezembro de 2024

O peso e a graça de um nome

Nomes são mais que palavras assentadas no Cartório de Registro de Pessoas Naturais. Eles carregam histórias, sonhos e, às vezes, confusões. Podem ser fardos, heranças ou até inspirações. Por isso, quando uma amiga me perguntou de onde vinha "Hayton" (leia-se “ái-ton”), fui levado a refletir sobre as camadas que um nome transporta e as surpresas que ele pode esconder.

Ilustração: Sidney Falcão

 

Meu nome, na verdade, é um sobrenome de origem anglo-saxônica. Foi escolhido por meu pai em homenagem a um inesquecível amigo que o orientou no início da carreira profissional. Parece leve, mas imaginem o peso das acrobacias linguísticas das pessoas que precisaram me chamar. 


No primeiro dia de aula, por exemplo, era sempre um desfile de variantes fonéticas: “Ail-ton, Ei-ton, Rai-ton, Rei-ton, U-áite...”. Tudo, menos "Ái-ton". Se aquele dito popular  "Mate o homem, mas não troque o nome"  fosse levado ao pé da letra, eu já estaria morto. No entanto, bastava uma breve explicação. Hoje, dou risada das confusões, mas reconheço: um nome não é só letras e sons; é um mapa em constante atualização, com caminhos traçados pela história pessoal e coletiva.

 

Por falar em história, dias atrás me deparei com uma intrigante. Fábia Godoi, influenciadora com 70 mil seguidores, viralizou ao compartilhar um "drama" de família: seu marido registrou a filha com um nome nada convencional. Em vez de “Alice”, ele voltou do cartório com “Alici”. Entre indignação e risos, o vídeo atingiu dois milhões de visualizações, e Fábia desabafou: “Quando ele chegou com o papel, quase tive um treco!”. Confesso que não entendi. Afinal, se “Fábia” e “Alici” são nomes igualmente exóticos, de onde vinha tanto espanto?

 

A ARPEN Brasil (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais) revelou à revista Exame, no final do ano passado, uma lista com alguns dos nomes mais curiosos já registrados nos cartórios tupiniquins. Entre eles, Aeronauta Barata, Chevrolet da Silva Ford, Dolores Fuertes de Barriga, Esparadrapo Clemente de Sá, Maria Privada de Jesus, Necrotério Pereira da Silva, Pacífico Armando Guerra e Renato Pordeus Furtado não deixam dúvidas: a criatividade dos pais brasileiros não tem limites.

 

Embora essa criatividade nos nomes seja livre, há uma lei que limita escolhas extravagantes. Felizmente, quem deseja mudar seu nome pode fazê-lo diretamente em um cartório. Mas é necessário ser maior de idade e arcar com uma taxa, que varia entre R$ 100,00 e R$ 400,00, dependendo da região.

 

Penso no meu próprio legado familiar. O sobrenome “Jurema” vem de minha mãe, uma cabocla paraibana por quem meu pai se apaixonou, na metade do século passado, ouvindo "O Cantor das Multidões", Orlando Silva. De origem tupi-guarani, ecoa raízes indígenas, evocando uma planta espinhosa usada em rituais e uma guerreira venerada na Umbanda. Já o “Rocha”, herdado de meu pai, sugere firmeza – algo que, ironicamente, nunca encontrei em mim. 

 

Posso imaginar a cena no cartório de Itabaiana (PB): meu pai, orgulhoso, registrando o segundo rebento da prole, primeiro homem. Além do nome, na época também se anotava a "cútis". No caso, ficou “cútis morena”. Anos depois, um querido amigo meu, de pele ainda mais escura, mostrou seu registro com ar gozador: “cútis branca”. Minha mãe, espirituosa, rebateu: “Ôxe... Pelanco de urubu também nasce branco!”. Esses rótulos de pele, assim como os nomes, são tentativas de simplificar algo bem mais complexo e mutável: nossa identidade.

 

Meus pais poderiam ter surfado naquela onda bem brasileira de misturar os próprios nomes, “Agostinho” e “Eudócia”, para batizar os nove filhos. Que tal "Eutinho" para mim? Seria overdose para mamute! Talvez “Agostócia” até agradasse uma de minhas irmãs. Felizmente, foram por outro caminho, e assim botei o pé no mundo com um nome, digamos, diferente.

 

Já meu irmão Hélder teve mais sorte: foi batizado em homenagem a Dom Hélder Câmara, um nordestino indicado algumas vezes para o Prêmio Nobel da Paz, defensor dos direitos humanos durante a ditadura militar. Um peso histórico que ele, por escolha ou acaso, nunca se esforçou muito para honrar politicamente. A verdade é que isso acontece com mais frequência do que se imagina. Nem sempre o nome inspira o legado.

 

Com o tempo, aprendi a aceitar as confusões em torno do meu nome. 

 

"Deixando a profundidade de lado (palavras do sábio cearense Belchior)", eu vos direi no entanto: nomes são etiquetas temporárias. Servem apenas de tiro de partida para a grande correria, dando pistas sobre de onde viemos, mas não nos definem na fita de chegada. 


O que fica não são letras nem sons, mas as marcas que deixamos na memória de quem cruzou nosso caminho na divina comédia humana escrita por todos nós.

quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Arte ou macacada?

Na última quinta-feira, enquanto tentava acompanhar uma aula por videoconferência, recebi de meu amigo, o espirituoso jornalista e escritor Francicarlos Diniz, uma mensagem enigmática:

– Vai render pano pra manga. Ou melhor, banana...
– A preço de banana? – devolvi, brincando, mesmo sem entender aonde ele queria chegar.
– De bananada... – ele retrucou.
– Aí pode embananar tudo... – insisti, esperando o troco.
– E ainda dizem que nós é que somos a República das Bananas...

 

Achei que ele falava da coleção Diário de um Banana, que acaba de chegar ao 19º livro, Baita Lambança. A série, escrita por Jeff Kinney, já vendeu mais de 290 milhões de exemplares em 70 idiomas. Mas não: Francicarlos se referia a outra “banana” que dominava as manchetes.

 

Uma obra de arte – com o perdão da palavra! – composta por uma simples banana presa à parede com fita adesiva foi vendida por absurdos US$ 6,2 milhões (cerca de R$ 35 milhões). O comprador foi Justin Sun, magnata das criptomoedas. A peça, intitulada Comediante, do italiano Maurizio Cattelan, reacende a velha questão: afinal, o que é arte?


A banana, que já havia causado furor na Art Basel de Miami em 2019, repetiu o feito na Sotheby’s de Nova York, onde, após lances frenéticos, superou a estimativa inicial de US$ 1,5 milhão. Justin Sun, além de pagar em criptomoeda, ainda herdou a obrigação de substituir a banana quando ela apodrecer. Para ele, porém, não era só uma fruta pendurada: “É um fenômeno cultural que une arte, memes e a comunidade cripto”, declarou, como quem descascava uma verdade universal.

 

A ironia não passou despercebida. Especialistas compararam a peça a Autorretrato, de Banksy, e à provocação histórica de Marcel Duchamp, com sua Fonte – o icônico urinol de 1917. Foi aí que Francicarlos, implacável, disparou mais uma: "Esse Duchamp, que de banana não tinha nada, começou com essa macacada.


Ilustração: mosaico de obras de Catellan, Banksy e Duchamp


De fato, Duchamp inaugurou o ready-made, transformando objetos comuns em arte e confundindo os limites do que pode ser exposto. Décadas depois, Andy Warhol imortalizaria a banana como ícone da arte pop, estampada no álbum inaugural da banda The Velvet Underground. E agora, Cattelan estica ainda mais essa corda, pendurando uma obra absurdamente simples e milionária.


Enquanto pensava nisso, lembrei de Bienal, a canção de Zeca Baleiro que satiriza o mundo da arte contemporânea com versos como “fios de pentelho de um velho armênio” e “asa de barata torta”. É o retrato ácido de um elitismo artístico que aliena o público comum – aquele que, como a mãe do narrador da música, exclama: "Meu filho, isso é mais estranho que o cu da gia e muito mais feio que um hipopótamo insone". Noutras palavras: é arte ou macacada?

 

Recordei também um episódio com meu amigo Anchieta, cearense de língua afiada, numa exposição no CCBB, em Brasília. Ele ficou cara a cara com cilindros metálicos pintados de vermelho que ostentavam uma etiqueta de obra de arte. Olhou para mim e cochichou: "Tá parecendo o tonel enferrujado em que a gente guardava água lá no quintal de casa, quando chovia no Ceará".

 

Voltei à aula, mas Francicarlos, certeiro, lançou uma última farpa antes de desaparecer: "Agora preste atenção à aula que o bedel tá de olho em você!".


Acatei o conselho, mas entre bananas milionárias e velhos amigos – não os comparo, que fique claro! –, tento decifrar o mundo de hoje que temos pro jantar. Só me falta aparecer alguém, inspirado em Zeca Baleiro, para “misturar anáguas de viúva com tampinhas de pepsi e fanta uva num penico com água da última chuva...”

 

Arte ou macacada? Talvez o verdadeiro espetáculo esteja em nos fazer rir do absurdo, mesmo que, no fundo, o riso seja de nós mesmos. Entre criptomoedas e valores intangíveis, penso até no camburão que deveria estar na porta da Sotheby’s, de Nova York, não para prender os lances da imaginação, mas os exageros da lógica. Mas tudo leva a crer que dinheiro cai do céu para essa turma!

 

Desde a última quinta-feira, todas as manhãs, quando acordo, enquanto olho o espelho do banheiro, tento decifrar o que passa na cabeça do velho ranzinza que me encara. Seria ele um ready-made ou apenas mais uma peça deslocada numa paisagem modernosa?

 

Na corda bamba, lá vamos todos nós, entre a genialidade e o absurdo, pendurados como bananas numa galeria que insiste em chamar de arte aquilo que só reflete a loucura deste admirável mundo contemporâneo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Fome, fúria e o mistério do pavão

Não sei vocês, mas sou daqueles que, ao ver um jornal ou revista antigos, não resiste à tentação de revisitar ecos de outros tempos. Quando vejo um recorte interessante, mergulho profundo numa viagem quase sem volta: o que terá acontecido com os protagonistas dessas histórias? Onde estão agora? Foram felizes? Deram certo ou desapareceram nas entrelinhas da vida?

 

Dias atrás, me deparei com um recorte da Folha de São Paulo, de 12 de janeiro de 2004, com um título tão surreal quanto o enredo: “Homem é espancado após matar pavão em praça no centro do Rio de Janeiro”.

 

Ilustração: Umor (Uilson Morais)

Paulo Roberto de Oliveira, 37 anos, desempregado e faminto, perambulava pelas ruas quando decidiu que um pavão, mais ornamentado que o próprio Clóvis Bornay no Carnaval, seria seu jantar. Não sabia que a ave, mais que um enfeite da fauna urbana, era mascote da comunidade de travestis da Praça da República.

 

Foi aí que entrou em cena o "bloco da fúria". Ao verem Paulo carregando o pavão desfalecido, os travestis iniciaram um verdadeiro carnaval de pedradas, pontapés e tapas. No desfecho, digno de seriado de TV, o miserável acabou com o braço preso às grades da praça, pendurado como um Judas em Sábado de Aleluia, até ser resgatado pelos bombeiros para ser indiciado por crime ambiental. Já os travestis, sumiram antes que pudessem ser chamados para esclarecer o "quase abate" de outro animal, da espécie supostamente o mais racional de todas. 





Já se passaram mais de duas décadas. O que aconteceu a Paulo? Está vivo aos 57 anos? Tem filhos e netos? Entrou na política? Fez carreira como influencer? Continua pulando grades na madrugada ou encontrou algum emprego entre uma reforma trabalhista e outra, podendo agora pagar boletos e impostos, ser chamado de consumidor e contribuinte? Quem pode me dizer? 

 

É certo que o desemprego (ou emprego informal) continua um monstro de setenta cabeças, crescendo com uma voracidade comparável à fome daquele fatídico dia, embora as estatísticas oficiais nem sempre reflitam esse estado de coisas no lado debaixo da Linha do Equador.

 

Mas não é só o destino de Paulo que me intriga (uma entre 250 mil almas em situação de rua no Brasil), e sim também o destino do coitado do pavão. Aquela inocente criatura, que poderia ter saciado a fome de outros viventes, acabou despertando a fúria desmedida de outros. Terá ele deixado algum legado proteico digno de nota? Chegou a transferir a sua carga genética para alguns filhotes?

 

Com meia dúzia de interrogações na cabeça, me transporto à canção “Pavão Mysteriozo” (da trilha sonora da telenovela global Saramandaia, de Dias Gomes), do cearense Ednardo que, nos anos setenta, carregava em suas asas críticas veladas à realidade opressora do regime militar.

 

O pavão daquele tempo não era nenhum desses jogadores de futebol chatos, deslumbrados e presunçosos, estrelas de um mundo midiático que se cotam acima daquilo que realmente valem. Nem alguns emplumados de gravata e paletó que conheci ao longo da minha vida profissional. O pavão de Ednardo era uma bela metáfora de voo, de liberdade, de fuga de uma realidade sufocante. E o folheto de cordel que inspirou o artista cearense (“O Romance do Pavão Misterioso”, publicado em 1923, por José Camelo de Melo Resende), tinha voltado a circular em um Brasil que sonhava voar para longe da repressão.

Gráfico

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa


Vinte anos depois, talvez Paulo, se ainda circula por aí (caso tenha se poupado do vexame de morrer tão moço, como canta Ednardo!), seja só mais um rosto perdido entre estatísticas que servem ao conforto de quem vive fora da linha de fogo. Sua fome e sua fúria seriam testemunhas silenciosas de um sistema que perpetua a exclusão e alimenta a indiferença.

 

E o pavão? Mais do que uma ave, simboliza o orgulho ilusório de uma nação que valoriza cores vibrantes, mas esconde sob as penas a escuridão de quem ignora os vulneráveis. Como no cordel de José Camelo, esse pavão também tenta voar para longe, mas suas asas estão presas às grades da desigualdade, eternizando a miséria.

 

E nós, prostrados em nossos sofás, seguimos assistindo a esse drama social como se fosse só mais um episódio de uma novela que nunca termina. Talvez sejamos os verdadeiros pavões: encantados pelas aparências de um progresso ilusório, enquanto a fome, a injustiça e a exclusão permanecem. Fechamos os olhos, mas a fome – não só de comida, mas de dignidade – continua nos encarando.

 

Vou parar com essas "viagens" sobre recortes de jornais e revistas antigos. Já basta o noticiário do dia. Se bem que o problema não está em revisitar esses recortes, mas em nossa incapacidade de transformar as histórias que eles contam. Porque, a rigor, todo recorte é um espelho: reflete o que fomos e nos mostra o que ainda podemos ser.



quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Traquinagens do acaso

Não posso garantir, mas desconfio que, em 1949, o imigrante libanês José Fares Haddad Lupus tenha sido vítima de uma das clássicas gafes datilográficas dos cartórios de antanho. Lá em Orós, no interior do Ceará, ao registrar o caçula, o nome pretendido era Raimundo Wagner. Saiu de lá, no entanto, com um Raimundo Fagner. Dona Francisca, a mãe, deve ter suspirado fundo. No fim, quem diria, o erro se revelou um golpe de sorte: o menino cresceu com um nome diferente e virou estrela de primeira grandeza, um dos maiores cantores e compositores do Brasil, dono de mais de 40 álbuns e uma legião de fãs espalhados pela América Latina.

 

Algo parecido aconteceu anos depois, em Penedo, Alagoas. Um amigo meu quase se chamou Wagner, mas seu pai (que nunca soube do caso envolvendo o imigrante libanês) saiu do cartório com a certidão de nascimento do filhão Wanger. Pode uma coisa dessas? O escrivão de Penedo superou o de Orós no quesito criatividade. Erro humano ou ato divino, pouco importa. Eram dois "Wagners" a menos no mundo. No Ceará, Fagner. Em Alagoas, Wanger, que, por obra do acaso, hoje trabalha lá pelas bandas de Fortaleza.

 


Fagner, conheço de longe, pelas ondas do rádio e pelas telas da TV. Foi uma das vozes que ecoaram do Nordeste para o Brasil, junto com Alceu Valença, Belchior, Ednardo, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, entre outros. Cada um, à sua maneira, misturou raízes regionais com elementos urbanos, mas Fagner escalou alguns degraus a mais: seu canto alto, às vezes esganiçado, dividiu opiniões. Mesmo assim, ninguém nega o talento que o levou a parcerias com figuras míticas como Chico Buarque, Elis Regina e Nara Leão.

 

Já Wanger, ou melhor, Gasolina – apelido que lhe caiu como um boné por causa da velocidade nos campinhos de futebol –, conheço de perto. No final dos anos 70, trabalhávamos na mesma empresa em Alagoas e fazíamos de conta que jogávamos. Enquanto eu, centroavante, esperava cruzamentos na área adversária, ele, ligeiro feito boato, corria como um Fórmula 1 pela beirada do campo, quando boa parte da turma engasgava o motor no álcool. Com trocadilhos.  

 

Anos depois, ele foi para o Rio, eu para Brasília, e só nos reencontramos em 1990, na Bahia. Casados e com filhos, dividíamos mais do que memórias: nossa pobreza era quase um patrimônio. Nossas “namoradas” criaram uma amizade que dispensava formalidades, e entre confidências, gargalhadas e lágrimas, atravessaram bons e maus bocados.

 

Mas a estrela de nossos encontros em família era sempre Wanger, com sua simpatia única. Churrasco no quintal? Improvisava uma churrasqueira com quatro paralelepípedos e uma grelha enferrujada, torta. A trilha sonora? Dois CDs: Fagner e Sinatra. “Nacional ou internacional?”, ele perguntava, se acabando de rir. Quem escolhia sabia que ouviria a mesma música até o sol pedir arrego em Vilas do Atlântico, nos arredores de Salvador.

 

Foi num domingo como outro que a molecagem me pegou de jeito. Voltávamos da praia, eu e meus dois filhos (de 13 e 10 anos), cansados de tanto mergulho. Gasolina e os seus ficaram na barraca Odoyá Iemanjá. Com o corpo ainda anestesiado pelas cervejas do dia, tive uma ideia estúpida: tocar a campainha de uma mansão e sair correndo. Sem avisar os meninos, apertei o botão e disparei feito um doido ou um dos capitães de areia da obra de Jorge Amado.

 

No auge da traquinagem, meu pé encontrou uma pedra saliente. Foi um encontro desastroso: a danada nem se mexeu e meu dedão quase foi amputado. Sangrando e mancando, cheguei ao carro, onde minha mulher e nossos filhos me olhavam com aquele julgamento mudo que dispensa palavras: "Isso é papel de pai?", devem ter pensado.

 

Na segunda-feira, lá estava eu, de paletó e gravata, um pé no sapato, outro numa sandália. Liturgia do cargo ou palhaçada fashion, cada um que tirasse suas conclusões. Na reunião matinal, tentei manter a compostura e convencer os colegas de que o curativo era herança de uma pelada no sábado. Wanger, na maior cara dura, ainda ofereceu um par de chuteiras para a próxima. O sorriso apertava os olhos e fazia escorrer óleo de peroba pelos cantos do bocão.

 

Dias depois, a ferida cicatrizou, e o episódio caiu no esquecimento. Mas bastou um jantar recente em Maceió, regado a pão, vinho e risadas, para espreguiçar a criança que cochila dentro de nós. E lá estava, esperta e saltitante, pronta para novas travessuras.

 


No fundo, é isso que nos salva: rir dos tropeços e relembrar velhas histórias com quem compartilha o peso – e a leveza – de nossos caminhos. O acaso pode até pregar peças, sim, mas são as amizades que nos ajudam a transformar pedras em degraus. Viver também é equilibrar-se entre gafes de cartório, churrasqueiras improvisadas e estrepolias inesquecíveis.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ecos de uma paixão

Os primeiros sintomas apareceram nos campinhos empoeirados nos arredores de Patos, no Sertão paraibano, onde brinquei de jogar bola até os 10 anos de idade. Naquela cidade também ouvi pela primeira vez a narração de uma partida de futebol entre o Nacional (de Canário, Lulu e Perequeté) e o Esporte, pela Rádio Espinharas, cujo locutor morava na mesma rua que eu. 

 

Fotografia: Edson Carvalho *

Quem viveu a experiência viu que futebol "assistido" e "irradiado" eram universos paralelos, habitados por emoções distintas. No rádio, os narradores faziam da partida um drama épico, mesmo quando, no campo, a bola circulava preguiçosa de um lado para o outro, sob um sol particular para cada um. 


Pelas ondas sonoras, cada ataque era uma investida heróica, uma marcha contra trincheiras inimigas. E o gol não era apenas uma bola que atravessava a linha de fundo e adormecia nas redes. Era êxtase coletivo, um urro em coro – Gooool! O futebol ao vivo se sentia absurdamente diminuído, sem a grandiosidade que a voz do rádio lhe conferia.

 

O rádio era uma alquimia de vozes que criava paisagens invisíveis. Não era som sem imagem, era som inventando imagens, costurando realidades além das limitadas por olhares míopes. E isso não se restringia ao futebol. O noticiário carregava uma autoridade quase mítica, uma presença que a TV nunca alcançou – uma voz firme preenche o imaginário de forma mais profunda que qualquer imagem de um locutor maquiado e com todos os fios de cabelo no lugar.

 

Diferente de agora, nunca troquei o campo pelo sofá. Ir ao jogo era ritual, ainda que, na prática, o espetáculo nem sempre fosse o drama pulsante que o rádio sugeria. Mas o casamento entre esses dois universos só veio quando ganhei meu primeiro radinho de pilha. Ali, com os olhos no campo e os ouvidos na narração, o futebol se completava: eu tinha o jogo visto e o contado, duas faces da mesma paixão.

 

Era o tempo dos narradores que, sem a imagem para provar ou contestar, dramatizavam cada lance. As narrações, verdadeiras obras de ficção, eram projetadas do meio da torcida ou da beira do campo, sem o luxo das cabines fechadas. 


Nos anos 1970, nas Alagoas de Arivaldo Maia, Édson Mauro, CSA e CRB, a TV enfim chegou lá em casa. As imagens passaram a dispensar certas palavras, e o "tira-teima", mais adiante, trouxe a precisão dos números, das distâncias – como se a emoção pudesse ser medida. 

 

No rádio, o narrador precisava de uma assinatura própria, algo além de um bordão, uma marca poética que elevasse a grandiosidade do lance: um drible, um chute, um gol raro, decisivo. Isso acabaria migrando para a TV, além de, mais recentemente, para plataformas digitais como UOL Esportes, GloboEsporte.com e SportTV Play.

 

Quatro desses porta-vozes da emoção (alegria, medo, raiva, surpresa, tristeza e outras) foram marcantes na consolidação de minha paixão pelo futebol. 


Geraldo José de Almeida, a voz do tricampeonato mundial na Copa do México, em 1970, eternizou frases como "Que é que é isso, minha gente!", "Olha lá, olha lá...", “Por pouco, muito pouco mesmo”, e criou apelidos inesquecíveis como "Craque café" (Pelé), “Mineirinho de ouro” (Tostão) e "Garoto do Parque" (Rivellino). 

 

Os bordões de Waldir Amaral até hoje ecoam em meus ouvidos: "Estão desfraldadas as bandeiras do... Um tirambaço sensacional, fuzilou...!”. “Dez, é a camisa dele... Indivíduo competente...". “Tem peixe na rede do...” e "O relógio marca...". Foi ele quem apelidou Garrincha de “Demônio de pernas tortas”, Denilson de "Cacique de Ramos" e Zico de “Galinho de Quintino”.

 

Lembro ainda de Januário de Oliveira, mestre em apelidos. Chamava Ézio de "Super-Ézio", Valdir Bigode de “O matador de São Januário” e Sávio de "Anjo Loiro da Gávea". E gritava: "Taí o que você queria, bola rolando…", "Tá lá um corpo estendido no chão", “Tá na área, é agora, bateu...”, “É disso, é disso que o povo gosta!”, “Cruel, muito cruel...”  

 

E o irreverente Silvio Luiz, autor de expressões impagáveis como "Olho no lance!", "Pelo amor dos meus filhinhos", “Pelas barbas do profeta”, “Foi, foi, foi ele, o craque da camisa...”, “É mais um gol brasileiro, meu povo, encha o peito, solta o grito da garganta e confira comigo no replay”, além de “Entortou a bigorna”, “Desandou a maionese” e “No pau!” – quando a bola acertava as traves, bem entendido. 

 

Ando, reconheço, com certa má-vontade em descobrir novos porta-vozes. Não vejo mais ninguém feito Waldir Amaral, quase sete da noite de um domingo qualquer, há meio século, contar como viu o gol mais bonito da história do Maracanã: Vasco e Botafogo empatavam quando, no último minuto, Roberto Dinamite, um semideus da bola, atingiu a perfeição (ouça aqui). Meus olhos chuviscaram.


Desde os campinhos empoeirados no Sertão paraibano, o futebol para mim nunca foi só brincar de jogar bola. Tinha cheiro e gosto de paixão e poesia no ar.   


(*) - A imagem que ilustra este texto, do amigo fotógrafo Edson Carvalho, foi a 1ª colocada do Concurso de Fotografia do Museu do Futebol 2024, São Paulo (www.museudofutebol.org.br).







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