quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Narizes

Seja arrebitado, de batata ou feito gancho, o nariz é o epicentro do rosto humano. Seu formato depende da genética, mas, a rigor, trata-se de uma adaptação aos odores e ao clima das diferentes regiões do Planeta, segundo um estudo recente, publicado por uma revista científica vinculada à Biblioteca Pública de Ciência dos Estados Unidos (a PLOS Genetics).

 

Pesquisadores se debruçaram sobre uma gama de tamanhos, analisando a largura das narinas, a distância entre elas, a altura, o comprimento etc., e concluíram que as diferenças entre os formatos poderiam ter sido acumuladas ao longo do tempo, além da seleção natural (os mais aptos sobrevivem, reproduzem-se e repassam suas características aos descendentes).

 

“Nariz, ai, meu nariz/ Como falam mal deste nasal, que é tão normal...”, cantava o inesquecível Juca Chaves, que sabia como ninguém se aproveitar de seu “bandeirante” – o primeiro a chegar nos cantos, segundo ele. Aliás, o de Juca precedeu a fama de outros célebres, como os de PC Caju, Fagner, Zé Ramalho e Luciano Huck. 

 


Li na Folha de São Paulo, recentemente, um artigo assinado pela jornalista Dália Ventura, afirmando que a crinolina teria sido uma das roupas mais perigosas já inventadas, mas também uma das mais amadas da história.

 

Para quem desconhece (eu não sabia, confesso! Até pensei ser um parente próximo da creolina), a crinolina é uma armação metálica usada sob as saias para lhes conferir volume, dispensando várias anáguas. A peça marcou o surgimento da moda propriamente dita porque trouxe um avanço: enquanto a estrutura da anágua era feita de osso de baleia, crina de cavalo, vime, madeira ou borracha inflável, a das crinolinas era feita de metal. 

 

O artigo citado revela que, na noite de 31 de outubro de 1871 (Dia das Bruxas, segundo a crença dos colonizadores dos Estados Unidos), as irlandesas Emily e Mary, meias-irmãs do escritor, poeta e dramaturgo Oscar Wilde, foram a um baile. Perto do final, Emily dançava com um de seus admiradores e, num de seus giros perto da lareira, o vestido pegou fogo. Mary tentou socorrê-la, mas também ateou fogo em sua própria roupa. E as irmãs não resistiram às queimaduras, tal como milhares de outras vítimas fatais, ao longo da História, envolvendo uma das roupas mais desejadas de todos os tempos.

 


Desejadas, sim, porque, apesar de várias tragédias 
– apurei que a pior delas ocorreu em 1863, quando milhares de pessoas não conseguiram escapar de um incêndio numa igreja da Companhia de Jesus em Santiago do Chile , a crinolina oferecia melhor mobilidade, ventilação e espaço, conferindo mais autonomia para evitar contatos indesejados e permitindo às mulheres decidirem sobre o que exibir ou esconder. Podiam, inclusive, guardar segredos inconfessáveis, desde amantes baixinhos, contrabando, gravidez, até pernas peludas e tortas.

 

Para desagrado da elite no Reino Unido, a crinolina passou a ser usada por todas as classes sociais, até mesmo por escravas libertas, que evidenciavam com seus dotes físicos força e poder para encarar de forma mais equânime a luta por igualdade social.

 

Fiquei numa dúvida terrível. Para mim, havia outro motivo bem mais razoável para o uso daqueles saiões de filmes e novelas de época. Seria capaz de jurar que, por baixo, nem calcinhas havia. Como não existiam cuecas, bidês nem duchas higiênicas.

 

Além disso, o primeiro papel higiênico do mundo só foi produzido em massa na segunda metade do século XIX, na tentativa de poupar certas partes dos danos causados por jornais, papéis de bodega, sabugos de milho e outros itens improvisados (folhas, gramas, peles de animais etc.) ao longo da aventura humana sobre a Terra.  

 

Penso que, naquela época, a etiqueta de convívio devia exigir um distanciamento social protocolar para não ferir narinas mais sensíveis, sobretudo no inverno europeu em que não se tinha o menor estímulo para o banho semanal.

 

Dizem, aliás, que a ausência de redes encanadas e esgotos era suprida com a utilização de copos e bacias que raramente permitiam o banho de hoje. As pessoas se sentavam numa cadeira enquanto despejavam pequenas porções de água nas áreas a serem asseadas.

 

Fala-se também que, mais remotamente, na falta de sabão, os babilônios misturavam gordura animal e cinzas vegetais para diminuir o cheirume. Entre os egípcios, a receita era até um pouco mais elaborada: levava também argila e bicarbonato de sódio. 


O cheiro característico das partes íntimas, afinal, remonta ao dia do despejo do Paraíso de Adão e Eva. O casal, imagina-se, não teria levado nem uma mísera sacola de bugigangas (cotonetes, creme e fio dental, desodorante, escovas, lenços umedecidos, protetores íntimos, sabonetes, essas coisas). 


De modo que minha dúvida persiste, mas estou seguro de que a crinolina, apesar de seu trágico histórico, prestou inestimável serviço às referências olfativas e ao formato atual das fossas nasais humanas, livrando de certos odores que deixaram de ser inalados. Ou não. 

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

O olhar de Marieta

Um olhar nunca é só um olhar. Possui mistérios e sutilezas que apenas outro olhar (até de um inocente curioso como eu; mais curioso do que inocente, alguém diria!) pode ver. Existem flagrantes que dispensam legendas. Falam por si sós.

 

Foto: Reprodução 

Este olhar, não tenho dúvida, traduz na justa medida a admiração, o amor, o carinho, a cumplicidade e o cuidado na escolha de alguém com quem partilhar planos, prantos e pratos.

 

O dramaturgo Aderbal Freire-Filho, que fez por merecê-lo de Marieta Severo, deixou este plano na última quarta-feira, aos 82 anos. 


Ela desabafou sobre como reagiu após vê-lo sofrer um acidente vascular cerebral (AVC) hemorrágico, em 2020. “Foi mais do que sofrido, foi inacreditável”, disse em entrevista a um site de notícias.

 

“É uma consciência da precariedade da vida que tomou conta da minha. Por mais que a gente saiba dela na teoria, quando ela se apresenta, muda tudo. Estávamos em Nogueira, na região de Petrópolis, no Rio de Janeiro, com as minhas netas, por causa da pandemia. Ele ia para o Rio resolver uma questão do imposto de renda e voltaria no dia seguinte. Nos falamos três vezes depois que ele saiu”, arrematou.

 

O interessante da relação entre eles é que não dividiam o mesmo teto. Marieta explicava que, como se casou pela primeira vez muito nova (com Carlos Vergara, em 1964), nunca teve um espaço para chamar de seu. 

 

Ela, portanto, nunca precisou sacudi-lo às seis da manhã, sorrir um sorriso pontual nem dizer pra ele se cuidar. Nem lhe fazer com açúcar e com afeto o seu doce predileto. Viviam muito bem, cada qual sob seu teto. 

 

Ela, que começou a se relacionar com ele depois dos 50 anos, disse certa vez que a história desse amor era bastante madura, porque cada um já vivera experiências antes de se encontrarem (após dois anos com Carlos Vergara, foi casada com Chico Buarque durante 33 anos).

 

Na época, não vou negar, fiquei triste com o fim do casamento de Marieta e Chico, depois de amargarem um exílio juntos (quando estiveram na alça de mira da ditadura militar) e de trazerem ao mundo três lindas filhas. Certos casais a gente sempre acha que são “para sempre”.

 

Queridos do público, bem-sucedidos, para muitos eles personificavam o “para sempre”. A notícia da separação intrigou os fãs, que teimam em não aceitar que a rotina cotidiana de astros, assim na Terra como no Céu, também se desgasta. 

 

Ainda bem que da união com Chico, além de Silvia, Helena e Luiza, brotaram lindas frutas como a amizade, o respeito e a admiração mútua. Sem contar as parcerias no teatro.

 

Em 2004, cinco anos após o divórcio, Marieta fez revelações interessantes numa entrevista. “Vejo casais que se separam e não se falam mais e fico chocada…  O Chico é meu melhor amigo, a primeira pessoa com quem vou falar numa situação difícil”. 

 

E disse mais sobre a vida a dois: “Não tinha glamour nenhum. Era dor de dente, briga com as crianças que deixaram tudo fora do lugar, com quem não fez a lição... Eu saía de casa para ir trabalhar, deixava as crianças com a babá e tinha culpa, sim. Como qualquer outra mulher. Ah, o glamour! A gente na banheira, com rosas em volta... Que banheira?! Não dava tempo nem de tomar banho direito!”. 

 

Naquele mesmo ano, Aderbal chegou até Marieta como quem chega do nada, não lhe trouxe nada, também nada perguntou. Vai ver pegou em sua mão e antes que ela dissesse “não”, instalou-se feito um posseiro dentro de seu coração. Bem feito pros dois!

 

Dezesseis anos mais tarde, ele sofreria o acidente. Aderbal ficou mais de dois meses internado. Ao deixar o hospital, os dois passaram a compartilhar a mesma casa pela primeira vez. Mas ele nunca mais se recuperou das sequelas do derrame.

 

O velório aconteceu no teatro Poeiras, repleto de amigos e tomado pela emoção, principalmente quando as netas de Marieta cantaram em homenagem a Aderbal. O corpo foi cremado quinta-feira passada, em cerimônia íntima, no Memorial do Carmo, no Caju, Rio de Janeiro, com a presença apenas da viúva e de algumas pessoas que trabalham no teatro.

 

Marieta contou que, assim que a equipe médica lhe disse que o quadro era irreversível, conversou com a amiga Andrea Beltrão (uma das responsáveis pela criação do teatro Poeiras, ao lado do casal) sobre a possibilidade de enterrar no teatro as cinzas do marido. 

 

Uma placa será colocada com o nome de Aderbal no muro do canteiro, espaço em que foi enterrada a urna com suas cinzas. E uma árvore será plantada no local, marcando assim a presença, para sempre, daquele que um dia fez por merecer o olhar de Marieta.

quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Figurinhas repetidas

Carnaval de 2058. Apago minha 100ª velinha e ainda me sinto disposto, tesão de seminarista, trabalhando e mentindo como nunca. Apenas uma dorzinha aqui na coluna lombar, fruto das travessuras com minha velha (lá vou eu criar problema, gratuitamente!) parceira de chuva, suor e sucos.

 

Não sei onde estava com a cabeça, por volta de 2024, quando voltei a trabalhar na mesma empresa onde passei uma primeira etapa de mais de quatro décadas ouvindo dizer que seria privatizada porque muda de rumo a cada quatro anos, sujeita-se a ingerência política, a regras da concorrência pública, não remunera tão bem seus funcionários, essas coisas.

 

Talvez tenha sido a curiosidade de experimentar tecnologias transformadoras como a Inteligência Artificial, que se impôs em definitivo sobre as relações humanas e de mercado. O metaverso, aliás, após uma aposta pesada de grandes corporações como centro de inovação e consumo, já se tornou arcaico, obsoleto. A vida como ela acontece, sempre.

 

Imagem: Dedé Dwight

Sim, houve um salto quântico nos modelos de negócios e nos processos de trabalho, mas nem tanta mudança assim no mosaico de almas, apesar de os cérebros poderem se conectar diretamente à nuvem de dados para transferência da memória ou troca de informações. 

Como diria um antigo poeta carioca, falecido há mais de seis décadas (ele também estaria agora completando 100 anos), tenho visto o futuro repetir o passado, esse museu de grandes novidades.

 

Reencontrei uma figura com quem trabalhei na primeira etapa de minha vida profissional. Costumava protelar tarefas, pelo menos até a primeira reiteração, dizendo: “eu só tenho certeza de que algo que me pedem precisa mesmo ser feito quando me cobram”.

 

Há algumas semanas, quando reiterei uma encomenda pela terceira ou quarta vez, seu desabafo me fez refletir: “Calma aí! Tu sabes por que o Criador fez o mundo em sete dias? Porque não tinha registro de entrada e saída no serviço nem chefe perguntando se a merda já estava pronta!”   

 

Quem permanece muito tempo numa mesma organização — no dizer de uns, falta de ambição profissional, de coragem ou até comodismo —, consegue listar sem dificuldade algumas figuras especiais. Eu mesmo guardo um time daquelas que se repetiram nas duas etapas do jogo.

 

A “Cara-de-Pau”, por exemplo, finge não escutar uma boa ideia oferecida por um subordinado para, logo em seguida, com alguns ajustes cosméticos, lançá-la em público, como se fosse “pai (ou mãe) da criança”.


A “Chata" é aquela que vive interrompendo teleconferências! Só faz comentários fora de contexto, desperta alguma compaixão no começo mas, logo depois, rejeição geral e irrestrita.

 

A "Curiosa", antes do “bom-dia”, remexe papéis (sim, eles continuam, inclusive o cheiro de tinta que inexplicavelmente ninguém lembrou de engarrafar!) nas mesas alheias e bisbilhota telinhas e telonas, convicta de que fofoca vestida de informação pode ser arma poderosa nos bastidores corporativos.

 

Já a "Entediante" se acha a rolha da primeira garrafa de vinho servida na Santa Ceia, incompreendida e subestimada por todos. Vive repetindo piadas sem graça, rindo não se sabe de quê.

 

A "Garganta" é de doer! Fala sem parar de si própria (o que já é péssimo) e dos outros (inaceitável!). Quem se enfeitiça com o som da própria voz parece interessante por alguns segundos, mas insuportável minutos depois.

 

E a "Gaveta"? Empurra tudo com a barriga para a próxima semana, sem o menor senso de oportunidade. Nunca se dá conta de que uma máquina lenta é até admissível, mas uma alma, nunca!

 

A "Inflexível", então, não sabe perdoar aos outros (nem a si própria) pelos erros cometidos, nem é capaz de reconhecê-los. Dificilmente aceita um “não”, porque se diz determinada, perseverante etc. A teimosia em pessoa!


Quanto à “Medrosa”, avessa a qualquer novidade (só valoriza o que “sempre deu certo”), não quer saber de nada que mexa com sua insuportável rotina, mas se corrói de inveja quando alguém ousa e se dá bem.

 

Tem a "Petulante", que sempre busca encurtar a altura entre a ponta do nariz e a do queixo. Só enxerga os outros de cima para baixo, com um risinho de deboche para qualquer comentário mais simplório dos mortais.

 

E o que dizer da “Sincerona"?! Vê-se acima do bem e do mal por ser “franca demais”. E vomita tudo o que lhe vem à cabeça, despreocupada se atinge ou não aos outros com a acidez de suas convicções.

 

Há também a "Surda". Não escuta nem aqueles que concordam com seus argumentos. Nem percebe que, mesmo obrigada a filtrar bobagens, se não souber ouvir, perderá por completo a capacidade de lidar com os outros...

  

Acordei aos sobressaltos. A vida eterna continua sendo um sonho instigante, um conceito atraente, apesar do álbum de figurinhas repetidas. 


Pior, bem pior, deve ser não acordar nunca mais, não se queixar de nada, de ninguém. Nem saber das queixas feitas contra mim. 


Melhor levantar e beber meu café que o dia promete.  


quarta-feira, 9 de agosto de 2023

A cachorrada é grande!

Você deve ter visto na Internet a notícia de que um youtuber japonês, apelidado de "Toco", anda sacudindo as redes sociais após gastar mais de R$ 70 mil numa fantasia hiper-realista de cachorro da raça border collie. O perfil "Eu queria ser um animal", criado em abril do ano passado, já conta com cerca de 32 mil inscritos e 12 milhões de visualizações.

 

Foto: Reprodução/Youtube


O "animal" aparece em vídeos passeando pela calçada, rolando no chão, brincando no quintal ou lambendo uma tigela. Ainda não aprendeu a, de quatro, levantar a pata traseira e molhar os postes que encontra pelo caminho, mas, imagino, uma hora chegará lá.  

 

“Eu morro e não vejo tudo!”, diria minha tia. Que, aliás, ficou livre de ver esta! Já se foi o tempo em que a expressão “vida de cachorro” significava uma existência cheia de problemas. Hoje, muito pior é vida de vascaíno. 


Aos poucos, o cão foi ocupando um lugar de destaque entre os humanos e já figura em segundo lugar na escala afetiva familiar, só perdendo para bebês recém-nascidos. De famílias ricas ou remediadas, bem entendido!

 

Tornou-se comum o cão se humanizar e o homem virar cachorro, se bem que existem muito mais exemplos do segundo caso, sobretudo no mundo empresarial. Quem nunca foi vítima de uma cachorrada que rosne ou atire a primeira pedra!

 

Noto cada vez mais características tipicamente humanas nos cachorros, embora ainda lhes falte andarem armados, matando-se uns aos outros. Ultimamente, aliás, já são avaliados até pelo seu aspecto psicológico. Algumas corporações militares, inclusive, apressam a aposentadoria dos farejadores mais velhos. Deveriam despachar também certos membros da tropa chegados a uma cachorrada.



Renatinho “Perna Curta”, um galego cheio de lorotas que morou no meu bairro nos anos 1970, contava que ensinou seu pastor alemão a, toda semana, buscar O Pasquim na banca da esquina. Um dia, o bicho rosnou, latiu, bateu patas, cravou as unhas no tapete e não foi. Quis deixar claro, segundo ele, que a partir dali só faria cocô e xixi sobre folhas de Fatos e Fotos ou Manchete. Achei um exagero, mas...

 

Com a gradual troca de casas por apartamentos, a educação canina tornou-se imperativa por causa de regras estabelecidas nos condomínios. Afinal, cachorro de apartamento (atenção: não me reporto àquele morador que você acaba de lembrar!) necessita ir à rua todos os dias, marcar território. Bem, é possível que o vizinho ou até mesmo o síndico também tenha de passear umas duas vezes por dia.  


A mãe de Renatinho, voltando ao galego a que me referi, teria comentado na manicure que o pastor alemão de seu filho era até educado demais. Costumava abocanhar só a folha de “classificados” do Jornal de Alagoas e se trancar no banheiro. Vai ver procurava anúncio de uma cadela de programa que assegurasse absoluta discrição desde a primeira farejada no bocal da arenga.


Bem, a última grande cachorrada de que tive notícia aconteceu há poucos meses, após a pandemia de coronavírus. No Brasil, o abandono de animais domésticos cresceu 70%, segundo a AMPARA Animal, uma organização que ajuda às ONGs e aos protetores independentes da causa. Bichos que antes tinham comida, abrigo, saúde e segurança, agora passam fome, medo e sofrem maus-tratos nas ruas de todo o país.


Pra botar ordem na bagunça, um conhecido deputado federal está colhendo assinaturas para apresentar um projeto de lei que obriga o registro de todos os bichos urbanos e proíbe a permanência em áreas sensíveis como bares, cinemas, hotéis, igrejas, órgãos públicos, praças de alimentação, praias e supermercados. Claro, uma nova estatal será criada para tocar o assunto – outra frente facilitadora da velha prática do “toma-lá-dá-cá”.

 

Vai começar pelas 100 principais cidades, onde se pretende exercer uma rigorosa fiscalização. Bicho que for encontrado sem coleira nem documento será preso por vadiagem. E, você sabe, a vadiagem por aqui já passou dos limites – tem gente graúda, inclusive, se sustentando de “vaquinhas digitais” e correlatos. 

 

Caninos e felinos de rua que forem apreendidos ficarão detidos por três dias. Se não aparecerem os donos, serão abatidos e exportados para o Oriente, sobretudo as regiões de Guangxi, Guizhou e Cantão, e em áreas do nordeste chinês, onde vive uma grande população da etnia coreana. 


No caso de bovinos, caprinos, ovinos e galináceos, o prazo de espera dos donos será de apenas 24 horas. A partir daí, a lei facultará a imediata ressocialização dos presos, mas sob a forma de guisados e sopas para os moradores de rua de nossa Pátria amada.

 

Agora falando sério, alguém precisa lembrar ao youtuber japonês que seu dinheiro pode ter destinação bem mais decente, pois 15 pessoas ainda morrem de fome pelo mundo afora a cada minuto. Do Afeganistão ao Zimbábue.

quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Melhor assim

“Tanto tempo depois, que coisa boa ver vocês dois ainda caminhando de mãos dadas!” – disse uma amiga de minha mulher, contemporânea escolar no começo dos anos 1970, ao cruzar conosco no calçadão da praia de Ponta Verde, próximo ao Marco dos Corais, em Maceió. Achando pouco, completou: “É coisa pra mais de 100 anos!”. E a julgar pelo riso enigmático de minha mulher, gostou da forma pela qual somos percebidos.

 



Ah, essas criaturas misteriosas e sensíveis! Tudo em nome do sexto sentido, da emoção! Não sabe a amiga dela que, antes de “coisa boa”, mãos dadas aqui tem a ver com diminuir o risco de uma queda precipitar o desfecho da caminhada, via concussão cerebral, fratura de bacia, cotovelos ou tornozelos de seminovos com as articulações desgastadas pela malvadeza do tempo, "tambor de todos os ritmos", como diz o poeta. Sem falar dos males crônicos, objeto de interesses conflitantes entre o plano de saúde, o fundo de pensão e a indústria farmacêutica.

 

Tudo bem, pode ser ilusório. Digo isso porque não boto tanta fé nos poderes da santa que me segura pela mão, com seus 52 quilos sobre metro e meio da cabeça aos pés, conseguir evitar o tombo do mamute aqui, com mais de seis arrobas há décadas. Isso, mesmo sendo tratado à míngua quanto a bolo “Souza Leão”, caldo de cana, chope, cocada, doce de leite, pão doce, pastel, pirão, pudim, rapadura, tapioca e outras "coisas boas" que é melhor esquecer pra não engolir saliva.

 

Não sabe a amiga de minha mulher o quanto nos custa a caminhada matinal, a começar pela travessia da avenida em direção ao calçadão, sinalizando, feito duas bestas, a intenção de usar a faixa reservada aos pedestres, enquanto alguns motoristas, motoqueiros e ciclistas (filhos de mães solteiras e pais incertos) fingem não perceber e nos ameaçam quebrar canelas e costelas ou, no mínimo, aparar as unhas de nossos pés com suas rodas inquietas e raivosas.

 

Se não infartamos com os sustos provocados por esses miseráveis, nem ainda transferimos aos nossos herdeiros a incumbência de repartir os caraminguás que juntamos em nossa jornada cigana, é provável que já desfrutemos de músculos cardíacos mais robustos por conta do exercício aeróbico diário. Se bem que, a  qualquer hora dessas, entre uma batida e outra do coração, tudo pode mudar.

 

Mas nessa toada, lá se vão mais de três décadas de calçadões. Desde que me vi obrigado a abandonar as peladas – ou elas a mim, nunca sei, quando perdi a esperança de ser convocado pela Seleção Brasileira – e fomos morar no Recife, onde, toda manhã, driblávamos dejetos caninos entre as praias de Boa Viagem e do Pina. 

 

Que fique bem claro, nós nunca encontramos pelo caminho La belle de jour, a moça dos olhos azuis como a tarde de um domingo, decantada por Alceu Valença como a mais linda de toda a cidade, para quem, aliás, escrevera o seu primeiro blues. Talvez porque, insone ou notívaga, sei lá, ela dormia tarde da madrugada e não conseguia acordar cedo. Poetas não mentem; se tanto, aumentam. Muito!


Quando eu era menino – não parece, mas já joguei no time –, ainda em Maceió, trabalhei de office-boy num grande banco, sendo um dos responsáveis pelo intercâmbio de documentos entre setores espalhados por mais de 10 andares. A ansiedade natural dos imberbes e a presunção de que assim agradaria “ao patrão” não me deixavam esperar pelos elevadores, sobretudo se me cobravam celeridade nas entregas. 

 

Na época, andei lendo em Seleções (versão brasileira da revista norte-americana Reader’s Digest) que subir oito lances de escada por dia reduziria em 1/3 o risco de mortalidade precoce. Resultado: subia e descia escadas o dia inteiro, seguro de que, agindo assim, seria visto como Raul Seixas em Ouro de Tolo, isto é, um cidadão respeitável, empregado, ganhando 327 cruzeiros mensais de salários. 

 

Não demorou muito e um colega cascudo, preguiçoso até pra se levantar da cadeira no final do dia, me viu no corre-corre e perguntou, fingindo ter dó de mim: “Você sabia que, em 1853, um americano chamado Elis Otis gastou uma grana preta pra inventar o elevador de passageiros?” E antes que eu confessasse a minha ignorância, disparou: “Deixe de ser besta, rapaz! Você acha inteligente não usar uma coisa boa dessas?” 

 

Tinha razão. Passei a usar também os elevadores. Mas até hoje me lembro daquela figura lerda (que partiu cedo pro chamado descanso eterno) toda vez que, por exemplo, me vejo numa escada rolante sem mover uma pálpebra.

 

Falando em escada, diz minha mulher que, de mãos dadas, quem sobe ou desce não precisa de corrimão. Eu, que não sou besta e disfarço bem minha pouca leitura sobre o que está nas entrelinhas, faço de conta que acredito. 


Melhor assim, a esta altura da caminhada.

quarta-feira, 26 de julho de 2023

Não custa tentar

Meu avô deve pensar que está em baixa na memória afetiva dos netos porque um deles passou o dedo em sua testa e brincou: “Vô, de Uber, dá 10 reais do cocuruto à ponta do seu nariz!”. E outro completou: “Vô é legal, mas mija de hora em hora!”.

 

Foto: Poliedro / Divulgação (Facebook)

Em meio à algazarra, imaginei o troco (com delicadeza, claro!): “Pois é... Tomara que um dia vocês também cheguem lá e escutem isso de seus netinhos...”. Creio que evitou polemizar para não parecer intolerante, agourando os ramos noviços de sua própria árvore genealógica. 

 

Pensei em abraçá-lo e pedir que relevasse os gracejos de meus primos. Chega uma hora em que até a expansão desenfreada do desmatamento capilar, a próstata crescida e a velhice devem ser encaradas como conquistas. Mas me contive: ele nunca gostou dessa coisa de abraços (e beijos) em público, nem com minha avó.

 

Deveria haver um distintivo para compensar os avós contra os infortúnios a que estão sujeitos. Sei lá, uma tatuagem entre as sobrancelhas, como um estigma, que concedesse certos privilégios: garantia de acesso livre a cinemas, museus e teatros; proteção especial das autoridades constituídas; gratuidade nos correios para intercâmbio de livros com os sebos, disponibilidade de um ouvidor geral para acolher e encaminhar queixas junto aos santos, entre outros. Eis aqui uma dica de projeto de lei, com forte apelo popular, a ser submetido à deliberação de órgãos legislativos.

 

Os netos de hoje andam cada vez mais espertos. Outro dia, na praia, ouvi um menino (8 anos, se muito) falando com o pai e fiquei impressionado. Sim, conversava com o pai, mas aposto que seja neto de alguém.  Dizia do susto que tomara com a arrebentação de uma onda que lhe fizera engolir água salgada: “Pai, eu estava no raso, pensando na vida...”  

 

Só faltou filosofar sobre o sal e a doçura de viver; ou convencer seu pai de que, se não existe vida extraterrestre, a vastidão do Universo constitui um grande desperdício de espaço, algo incompatível com a inteligência divina. Mas não chegou a tanto, ainda bem! Foram apenas alguns goles de água salgada.

 

Se visse a cena, é provável que meu avô comentasse com a gente: “Ah, crianças, acreditem, eu só fui pensar seriamente na vida depois dos 30 anos, já casado e pai de três, quando resolvi largar o cigarro e beber menos. Ultimamente, me contento com duas ou três taças de vinho, em momentos cada vez mais raros. E lá se foram 35 anos em que não me dou o desfrute de três baforadas...”. 

 

Talvez acrescentasse, como li numa crônica que ele escreveu: “Até cinco ou seis anos atrás, todas as vezes em que tomava uma sopa em colheradas lentas, acompanhada de um pãozinho francês, batia saudade dos tragos que dei, daquela breve vertigem que me esfriava os dedos, deitado numa rede, a pensar na vida...Que vício desgraçado!”.  

 

Desconfio de que a gozação por parte de meus primos seja reflexo do fato de terem nascido, assim como eu, com livre arbítrio para escolher para qual clube torcer, desde que fosse o Vasco. Nada demais para quem, desde a vida intrauterina, dormia embalado por uma canção de ninar que começava assim: “vamos todos cantar de coração, a cruz de malta é o meu pendão...”. 

 

Ano passado, recebi de meu avô uma mensagem cujo arremate me comoveu: “Assumo minha culpa por nunca ter dito de todo o amor que sinto pelos meus netos, sentimento que não impõe condições nem espera nada em troca, exceto, se não for querer demais, um sorriso e dois dedos de prosa, de vez em quando...”.  

 

E me aconselhava a, por enquanto, deixar de lado o futebol. Dizia que só no YouTube vou saber quem foram Romário, Edmundo, Juninho Pernambucano e Felipe, que fizeram a cabeça de meu pai. Assim como Dinamite, Andrada, Zanata e Geovane fizeram a dele. Ou como Ademir Menezes, Barbosa, Danilo e Ipojucan balançaram o coração de meu bisavô, que nem cheguei a conhecer.

  

Brincalhão – os netos tiveram a quem puxar! –, agora está me sugerindo conversar com meus primos para tentarmos um esporte menos estressante, como o muay thai (boxe tailandês). E fala de seu desgosto quando nos vê cabisbaixos, com celulares nas mãos até na hora do almoço. 


“Tudo, menos celulares na mesa! Notem que já não vemos jogadores de futebol se abraçando após uma partida, como acontece com lutadores, que seguem amigos mesmo após uma sangrenta refrega onde cada um tenta acertar o outro com socos, cotoveladas e pontapés...” – pondera.

 

Não custa tentar. Vou chamar meu avô para jogar xadrez, baralho, dominó ou pega-varetas com a gente. Quem sabe nos ajuda a refletir sobre o sal da vida e a doçura de ainda tê-lo entre nós.

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Por isso tô aqui!

Correu o mundo, semana passada, a notícia de que a madre superiora Teresa Agnes Gerlach, encarregada do Mosteiro Carmelita da Santíssima Trindade em Arlington, no Texas, Estados Unidos, foi acusada de enviar mensagens de texto com conteúdo sexual a um sacerdote, identificado como padre Philip Johnson.

 

Embora tenha confessado o envio das mensagens, ela alegou que nunca houve intimidade física entre eles. Demonstrando remorso durante uma audiência na diocese, Teresa disse que o vacilo foi motivado pelo amor que nutre pelo padre. "Eu cometi um erro terrível. Não estava em meu juízo perfeito. Até uma freira pode cair"

 

Por coincidência, isso me fez recordar de outro padre Johnson (deve estar bem velhinho!), um missionário canadense que viveu no Brasil em meados do século passado, que me matou a curiosidade sobre algumas hipóteses para o nome da missa celebrada na véspera de Natal. A mais aceita pela fé católica, segundo ele, diz que um galo teria cantado à meia-noite do dia do nascimento de Jesus, anunciando a chegada do Messias – a única vez que um galo cantou antes do amanhecer. 


Há quem diga que um galo cantou quando o apóstolo Pedro negou três vezes conhecer Jesus. Outros afirmam que o animal simboliza o amanhecer, celebrado pelos pagãos com gratidão ao Deus-Sol. Ou que a missa leva esse nome porque acaba tão tarde que os galos já estão "tecendo a manhã", como no poema escrito por João Cabral de Melo Neto, que levou mais de oito anos e 32 versões para ser concluído.

 

De fato, padre Johnson era bastante curioso, interessado nos mais variados assuntos, uma verdadeira “enciclopédia Barsa”. E lidava na paróquia com muitos adolescentes cheios de cravos, dúvidas e espinhas, a quem oferecia sábios conselhos, merecendo, por isso mesmo, o respeito das famílias do bairro. 

 

Tanto respeito, inclusive, o levava a benzer casas recém-construídas. Nada cobrava para si nem para a Igreja, mas exigia três coisas: uma barra de enxofre, um prato de sal grosso e uma lata de carvão vegetal. Só então tinham início as orações e o enaltecimento da imagem de Nossa Senhora. Depois, partiam para o quintal onde estava a cisterna ou o poço, onde ele despejava os materiais requisitados. E a casa estava abençoada.

 

Anos mais tarde, depois que retornou para a América do Norte, descobriu-se a lógica “espiritual” do benzimento: o sal grosso é fonte de minerais e de iodo, elementos importantes para a nutrição e a saúde; o enxofre fortalece a imunidade e participa da produção de colágeno; e o carvão, que além de eliminar cheiros e sabores desagradáveis da água, é grande aliado no tratamento de gases gastrointestinais, combate o inchaço e dores abdominais.

 

Curioso como poucos, numa época em que nem se cogitavam avanços científicos do porte de um chatbot online de inteligência artificial, padre Johnson sabia da vida de todos os moradores do bairro. Era estuário e cofre das confissões e segredos comunitários, dos pecadilhos veniais aos mais encardidos.

 

Fotografia: Dedé Dwigth


Certo dia, Teresa (outra coincidência, acreditem!), uma loirinha que morava no bairro, curtia cinema, teatro e dançar solta, livre e leve, ao ritmo  de Os Embalos de Sábado à Noite, procurou o padre Johnson bem cedo, indo ao ponto:

– Padre, eu sei que pequei, mas tô arrependida. Cometi um erro terrível. Não estava em meu juízo perfeito.

– Como foi isso, minha filha?

– Nem faço ideia. Me pegou desprevenida, juro! 

– Sei… E daí? 

– Daí que ele me perguntou se podia botar pra fora. 

– E você?

– Quase infarto. Tinha tão pouco tempo que a gente… 

– Quanto?

– Três semanas.

– Só?! Já tinha acontecido algo mais sério entre vocês?

– Nada demais… Só uns abraços apertados, dançando "Je t'aime... Moi Non Plus"Something... E um selinho na boca, vai! 

– Pois é… E ele?

– Ele o quê, padre?

– Botou pra fora?

– Nem me fale…

– Botou ou não botou?

– Não me deixe mais acanhada…

– Veja, filha, foi você que veio me procurar. Só posso ajudar se souber o que ocorreu – pondera o confessor, no auge da excitação de todo curioso quando prestes a descobrir um segredo felpudo.

– Não sei se vou ter coragem de contar.

– Por que não? O pior já passou, imagino…

– Sei não… Era enorme, padre…

– Eu devia ter desconfiado desde domingo... Você aqui na missa ao lado dele, toda animada... Tinha uma coisa esquisita no ar…

– Na hora, o susto foi grande, fiquei muda. Fechei os olhos e rezei baixinho…

– Seja mais clara, filha, me conte tudo o que houve.

– Assim que ele desabotoou, aquele troço deu um pulo…

– Você chegou a apalpar?

– Como?

– Filha, das passagens bíblicas que tratam do pecado da luxúria, uma das mais incisivas é a que está em Gálatas 5:19: “Ora, as obras da carne são manifestas: imoralidade sexual, impureza e libertinagem”. E em Colossenses 3:5-6, tem outra referência: “Assim, façam morrer tudo o que pertence à natureza terrena de vocês: imoralidade sexual, impureza, paixão, desejos maus... É por causa dessas coisas que vem a ira de Deus sobre os que vivem na desobediência”. Mas, me diga uma coisa: o que você tá chamando de “troço”?

– Padre, tô falando da hérnia no umbigo dele… Parece uma bola de ping-pong de couro! – explicou, com um sorriso ambíguo.

– Eu, hein?! Pensei que…

– Também pensei, padre… Por isso tô aqui!




quarta-feira, 12 de julho de 2023

Divinas tetas

Numa época em que se recorria muito a falas estereotipadas, o humorista Max Nunes afirmou que “o casamento é como a pessoa que quer tomar um copo de leite e compra uma vaca”. E o cartunista, escritor e dramaturgo Millôr Fernandes completou: “se, de vez em quando, o leite azeda por aí, não tenho nada com isso; a vaca não é minha. Escolham melhor na próxima vez”. 

 

Mais tarde, o cineasta e jornalista Arnaldo Jabor contradisse seus velhos amigos. “Para todos os homens que perguntam ‘por que comprar a vaca se você pode beber o leite de graça?’, aqui está a novidade: hoje em dia, 80% das mulheres são contra o casamento e sabem por quê? Porque perceberam que não vale a pena comprar um porco inteiro só para ter uma linguiça!”. 


Reprodução/Redes Sociais

Sobre vacas, aliás, você sabia que uma startup gaúcha (a CowMed) conseguiu decodificar, com Inteligência Artificial (IA), o que elas falam, pensam, querem ou sentem? Uma coleira tecnológica que interpreta o comportamento bovino foi apresentada ao mercado como uma ferramenta poderosa para ajudar os pecuaristas a se comunicarem melhor com seus rebanhos. 

É uma peça de nylon, com autonomia de cinco anos, capaz de monitorar os animais por 24 horas, em tempo real, enquanto o criador recebe, no celular, notebook ou tablet, uma espécie de tradução. Ajuda-o a descobrir com antecedência as necessidades mais prementes das vacas. O aparelho analisa cada movimento ou som e informa o que pode ser: cansaço, cio, dor, fome, sede etc. Ansiedade, bullying, compulsão por redes sociais ou transtorno obsessivo-compulsivo, ainda não. 

 

Também monitora variáveis como tempo que leva se alimentando, tempo de ruminação, de descanso, de caminhada, qualidade da respiração etc. Com esses dados, utiliza-se a IA para interpretar a “alma” da vaca.

 

Tenho para mim que essa ferramenta terá uso adicional bastante útil noutro tipo de rebanho, mas isso seria assunto para outra crônica.

 

A peça identifica ainda, com até cinco dias de antecedência, se a vaca vai ficar doente. “Existem sinais clínicos imperceptíveis, porque o bovino, por ser uma presa, tem a característica de esconder a doença. Com o sistema, é possível analisar os sinais e fazer um diagnóstico precoce”, pontuou um dos acionistas da CowMed.  

 

Em resumo: após o pagamento da primeira parcela, o produtor recebe o kit de instalação com colares, antenas, material de treinamento, acesso à plataforma web e o aplicativo. Precisa apenas ligar o equipamento na tomada e colocar uma coleira em cada animal. A comunicação se dá por radiofrequência e Wi-Fi. A partir daí, só Deus sabe o que vai rolar na “conversa de pé-de-orelha”.

 

Foi-se o tempo das vacas magras, ainda que os ossos nos ofereçam as melhores sopas. 

 

Essa “humanização” me fez recordar da célebre crônica “Por vários motivos principais”, de Stanislaw Ponte Preta, acerca de um jantar envolvendo a fina flor do high society da capital da República, quando uma provecta senhora declarou que adorava a sua obra. E mais: que estava ansiosa para ler o próximo livro, cujo título, se possível, gostaria muito de saber em primeira mão.

 

“Fiquei meio chateado de revelar o nome... Ela podia me interpretar mal. Como ela insistisse, porém, eu disse: Vaca, Porém Honesta” – escreveu o genial cronista.

 

Segundo ele, “a madame deu um sorriso amarelo mas acabou concordando que o nome era muito engraçado, muito original”. Vai ver ponderou que por aqui vaca é sinônimo de concubina, devassa, galinha, oferecida, marafona, meretriz, piranha, promíscua, prostituta, puta, quenga, rameira, rapariga, tolerada, vadia, vagabunda, dentre outros. 

 

Quase sempre, o uso desses sinônimos não passa de exagero em relação à vizinha ou à amiga do marido. Se bem que já testemunhei machão brincando que “nunca viu gato de botas, mas já viu vaca de salto alto”. Só depois do divórcio, admitiu outra pesada sentença: “Duro não é suportar o peso dos chifres, é continuar sustentando a vaca”. 

 

Essa visão distorcida sobre a gloriosa fêmea do gado bovino, mãe de leite de quase todos nós, talvez tenha sido ampliada quando Gal Costa, no Rock in Rio, em 1994, subiu ao palco com os seios à mostra para cantar "Brasil", de Cazuza.

 

“(...) Brasil, mostra a tua cara.

Quero ver quem paga

Pra gente ficar assim!

Brasil, qual é o teu negócio?

O nome do teu sócio?

Confia em mim! (...)”

 

Aos mugidos, a plateia delirava, por certo desejando ouvi-la (em vão, registre-se!) cantando "Vaca Profana", que Caetano Veloso escrevera para ela 10 anos antes:

 

“(...) Dona das divinas tetas,

Derrama o leite bom na minha cara

E o leite mau na cara dos caretas! (...)

 

Com a criação da CowMed, nossas vacas nunca foram tão bem tratadas e se distanciam do indesejável caminho do brejo. Se vamos descobrir que são mentirosas, só o futuro dirá. 

 

Quem sabe os caretas pendurados nas tetas orçamentárias da Pátria-mãe se animam a fazer algo parecido pela massa que passa fome, nutrindo-se da esperança de levar, pelo menos, uma vida de gado. 

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Basta um copo d'água

Tudo bem, era o delegado de uma cidadezinha do interior, mas, antes de tudo, meu velho amigo havia décadas. Porém foi inflexível naquela tarde:

– De jeito nenhum! Tu entende de banco. Deixa que cuido de meu trabalho.

– Ele vai morrer à míngua, velho!

– Sei o que tô fazendo, não te mete…

 

Enquanto ele conversava ao telefone, eu circulara pela delegacia e dei de cara com um bêbado deitado numa cela, nu cintura acima, cheirando a chuva, suor, cerveja e vômito, a implorar num fiapo de voz: “… Um copo d’água pelo amor de Deus! Tô me acabando de sede!”


Fotografia: Dedé Dwight 

Tive pena. Preso na noite anterior, num comício na praça da Matriz, ameaçara o prefeito com uma peixeira. “Porte de arma branca e tentativa de homicídio”, segundo o boletim da ocorrência.

 

O prefeito defendera no palanque a candidatura de seu vice à sucessão municipal, enaltecendo supostas virtudes: “É pai de família decente, trabalhador, honesto, comprometido com os verdadeiros cidadãos...”

 

Nisso, um pacato cidadão que a tudo assistia da mesa de um boteco (e acabaria preso) interrompeu o discurso falando em voz alta, provocando risos na plateia:

– Dá o rabo pra ele... 

– O quê cê disse, cabra safado!? – reagiu o orador, com fama de garanhão, valente e desbocado – Eu como o seu e o dele, seu filho da puta!

– Safado é você! Desça daí se for homem! – retrucou o outro com uma faca que, em meio segundo, abriu uma clareira amazônica na multidão.

 

O prefeito refugou ou não teve tempo de descer do palanque. Três policiais desarmaram o desafiante, conduziram-no à delegacia, algemado e aos bofetões. 

 

Eu nada sabia quando encontrei o sujeito preso, quase 24 horas depois, numa ressaca industrial, privado de água “para pensar na merda que fez”, segundo um dos policiais.

 

Quis oferecer uma garrafa de água gelada para atenuar o sofrimento, mas percebi que não seria sensato interferir na liturgia em curso sem consulta prévia à autoridade no recinto. Amigos, amigos, algemas e tapas à parte.

 

Nunca fui de reclamar contra a bebida e suas consequências, embora já não beba mais como antes. Já gostei e Deus sabe com que desgosto lamentei os vacilos a que alguns goles de vinho a mais me levaram. 

 

Nas sextas-feiras, batia uma euforia inexplicável que me empurrava às taças e pratos. Aliás, não fosse a ameaça de alterações metabólicas e neurológicas, levando os seres humanos à falência precoce de múltiplos órgãos (fígado, estômago, pâncreas, cérebro etc.), não tenho dúvida de que os próprios médicos nos aconselhariam a beber mais vinho, como forma, inclusive, de tolerar decepções sem enlouquecer.

 

Nem sei se entendia de serviços bancários, como se disse a meu respeito naquela tarde, mas nunca vi ninguém procurar um banco por prazer, como quem vai ao boteco, ao cinema ou ao restaurante. Por isso, nunca neguei a ninguém um copo d’água (ou um cafezinho) antes de iniciar uma conversa. Tinha comigo que desarmava os espíritos.

 

Já em casa, noite alta, pensava no que teria levado aquele sujeito a beber tanto, solitário, mesmo diante de uma multidão. No porquê o elogio ao candidato o fizera desejar ao prefeito uma das mais dolorosas experiências, segundo relatos (óbvio!). No que teria acontecido se os policiais não fossem tão ligeiros.

 

Há pouco mais de três décadas, eu sabia que se instalara no Brasil um certo desencanto com a classe política, a ponto de o próprio irmão do presidente da República ter apresentado provas do envolvimento dele num caso de desvio de dinheiro. Usou-se a campanha eleitoral como caixa 2. Desviaram-se verbas públicas criando-se empresas fantasmas e contas no exterior. Pior: até ali, ninguém havia sido preso, tomado uns sopapos, nem obrigado a passar horas sem um copo d’água sequer.

 

Hoje, não sei por onde andam ou o que fazem (se é que ainda se mexem) os personagens deste caso, nem gostaria de perguntar a meu amigo, já aposentado, mas me pego aqui especulando sobre possíveis desdobramentos. 

 

Vai ver o cidadão, ao ser liberado, sóbrio, voltava pra casa quando foi vítima de uma emboscada, sendo espancado até desfalecer num monturo qualquer. Capangas ligados ao prefeito circulavam nas proximidades, mas, por falta de provas, deu-se o caso por encerrado em questão de minutos. 

 

Ou teria encontrado o prefeito na feira livre, comprando os ingredientes para um regabofe com seus correligionários. Sentindo-se ultrajado por fatos precedentes, tomou das mãos do açougueiro uma serra e golpeou o pescoço do garanhão (que, segundo boato, vinha dando em cima de sua mulher, uma servidora lotada na cantina da prefeitura).

 

Ou, mais provável, depois de alguns insultos recíprocos e de um copo d’água para cada um, ambos recordaram do troca-troca de figurinhas na hora do recreio no grupo escolar e tudo acabou num abraço apertado. Daqueles com tapas nas costas que beiram o limite entre a cordialidade e a fratura de costela. 

 

Não é por nada, mas continuo convencido de que basta um copo d’água para diluir alguns espíritos inquietos em certas ocasiões. Até a próxima decepção, pelo menos.

 

quarta-feira, 28 de junho de 2023

Casa de farinha

Famintos e com sede, chegávamos à zona rural de Colinas, no oeste maranhense, logo depois do São João de 1967. Ali moravam meus avós paternos, Mãe Sussu e Pai "Simente", alcunha poética para um agricultor de subsistência ou simplificação de "Nascimento", sobrenome português de origem religiosa emprestado a cristãos nascidos em 25 de dezembro.  

 

Mais de meio século adiante, é difícil imaginar como uma família (pais e sete filhos) viajou numa Rural Willys, sem cintos de segurança nem airbags, por mais de 1.300 km de estradas esburacadas, na lama ou na poeira, a partir do sertão paraibano. Jornada, inclusive, com desfecho épico: a légua final, escorregadia e enladeirada, se deu sobre uma tropa de jumentos.



 

Como esquecer do fim de tarde em que Pai Simente, sentado na porta de casa, ao lado de uma escarradeira, quase infarta por minha causa? Tio Marcelino, que preparava fogos de artifício, deixara próximo da janela algumas tabocas (gomos de bambu cheios de pólvora), enfileiradas como pirulitos num tabuleiro. Buliçoso, encostei uma brasa no estopim de uma delas para ver o que aconteceria.

 

Foguetões subiram assobiando e iluminaram o céu, ofuscando as primeiras estrelas. Meus pais, que raspavam pratos de “Maria Isabel” – arroz puxado no alho com carne de sol picada –, correram da cozinha até a sala onde me encontraram com a cara de sonso, sem atinar para o que poderia ter ocorrido à cobertura de palha de babaçu de todas as casas do povoado.


 

Como não recordar do abraço quente e apertado de Mãe Sussu e do olhar tolerante de Pai Simente, livrando-me de uma surra? Neto é neto no coração dos avós, com ou sem a anuência dos pais.


 

Na manhã seguinte, Bento, meu primo, admirou-se da balinheira (estilingue) que eu trouxera. Ele também usava uma arma poderosa: o bodoque caiçara, arco com dois cordões paralelos, esticados, que arremessavam "balas" de barro. Além do parentesco, em comum entre nós havia apenas o propósito de extinguir as rolinhas “fogo-apagou”.

 

O encanto pelo brinquedo alheio nos levou a trocar as armas, e o que se viu foram polegares e indicadores duramente castigados durante a aprendizagem. Esfolamos os dedos e não acertamos as rolinhas, que devem estar rindo de nós até agora. Os deuses das matas nos pouparam desse remorso.  


O mundo mudaria quando vi pela primeira vez uma casa de farinha. Depois da arranca da mandioca, adultos a descascavam e ralavam até virar massa. Em seguida, extraíam a água numa prensa, antes de peneirar a massa para retirar impurezas. O que sobrava, seguia para ser mexido numa chapa enorme, no fogo a lenha, até virar farinha.



 

Não me deixaram raspar a mandioca no caititu (cilindro com serrilhas metálicas), nem mexer a farinha na chapa quente. Pensei que tinha jeito pra coisa, como achava que usar o moedor de carnes era a coisa mais besta deste mundo, apesar dos nove anos de idade. Soube que a casa de farinha não existe mais. Praga de menino? Minha, juro que não foi. 

 


Triglicerídeos à parte, ali descobri do que uma boa farinha era capaz de provocar quando misturada à água em que cozida a carne ou o peixe: o bendito pirão que me leva, até hoje e sem culpa alguma, a reincidir no pecado capital da gula. 





E como não lembrar dos beijus de tapioca e dos bolinhos de farinha de arroz, servidos com café coado? E das redes espalhadas pela casa na hora de dormir, onde o "dono" de cada uma, depois que as lamparinas eram apagadas, só poderia ser identificado pelo par de chinelas?


Havia nas proximidades do sítio um olho d'água onde algumas mulheres, fiéis à etnia de seus antepassados Timbiras, após lavarem e enxaguarem trouxas e mais trouxas de roupas, tomavam banho nuas em pelo. Pena que alguns adultos, por motivos que desconheço, não me deixaram matar a minha curiosidade, digamos, antropológica. 

 

 

No dia da volta, chorei bastante. Obrigaram-me a deixar o bodoque caiçara, por falta de espaço no bagageiro da Rural Willys. Ainda faríamos escala em Caxias, já próxima da fronteira com o Piauí, onde meu pai havia morado antes de migrar para a Paraíba. 

 


Ardia de febre quando chegamos. Era o sarampo. Assim como já acontecera em anos anteriores, nas temporadas de catapora (varicela), caxumba (papeira) e coqueluche (tosse-comprida), a doença derrubaria também meus irmãos. Ser o primeiro a contrair teve seu lado positivo: poder tomar guaraná, leite em pó e comer maçã, além de desfrutar do cuidado prioritário de uma mãe de muitos.




O mundo deu muitas voltas de lá pra cá. Tia Cristina, que desapareceria nos primeiros dias da peste que virou o planeta de ponta cabeça meio século depois, antes de partir me contou que o sítio em que viveram Mãe Sussu e Pai Simente já dispõe de energia elétrica e água encanada, além de casas cobertas de telhas, algumas com TV a cabo. 



 

Sei que paredes e medos mudam de lugar, que a gente embrutece e até desaprende a chorar nossas perdas. Mas nada neste mundo apaga as coisas e cores guardadas que a saudade, volta e meia, nos pede pra remexer.