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Que chato, não?!

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Ninguém nasce chato. Ser chato é um estado da alma, uma dimensão do espírito que se apura em fogo brando. Existem aqueles que, desde os primeiros minutos fora do útero, abusam do direito de berrar, seguros de que se darão bem no novo mundo na base do grito. Modéstia à parte, perdi a conta de quantas vezes fui tachado de chato pela minha mulher.  Apesar de mais de cinco décadas de mútua tolerância, ela, vez por outra, não hesita em soltar um contundente “ô cabra chato!”. Mas sabe que seria bem pior conviver com uma pessoa insossa, morna e previsível. Ilustração: Umor Não vou negar, às vezes reclamo de forma mais destemperada de certas coisas. Mas, no calçar das meias alheias, percebo que ninguém está livre desse rótulo. Somos, na verdade, uma multidão de chatos vagando pelo mundo, alguns em avançado estado de decomposição mental.   Para mim, o mais difícil de aturar é aquele que não tem a mínima ideia da extensão de sua chatice e passa o dia criando situações irritantes. Não sossega nem

Raízes e horizontes

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O romancista e poeta baiano Carlos Barbosa me contou que “O Meu Pé de Laranja Lima”, um clássico da literatura brasileira escrito por José Mauro de Vasconcelos, publicado originalmente em 1968, acaba de alcançar a marca de 400 mil exemplares vendidos na China. Trata-se da história de Zezé, um menino de cinco anos muito esperto e sensível. Tornou-se leitura escolar para as crianças chinesas. A tradução foi feita por Ma Guangping e publicada pela primeira vez em 1983. Ela é conhecida por trazer várias obras literárias brasileiras para o público chinês, ajudando a promover nossa literatura no Oriente. A notícia me fez lembrar da história de meu amigo  Maneco. Ele passava horas contemplando a sombra de uma varinha cravada no chão do quintal, que mudava de posição a cada instante, até o pôr-do-sol:  – O que você faz aí, hein?  – Tô vendo o tempo passar, mãe... No terreiro, além da cerca de avelós, do pé de manga espada e do galinheiro, havia o areal onde ele brincava com a irmã, inclusive n

Pedacinho do céu

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Como é curiosa e tragicômica nossa pátria de contradições, onde o futuro é tão incerto quanto a próxima nota de um chorinho que se repete, ano após ano, como se estivéssemos presos num ciclo sem fim.  Há três semanas o Brasil respira ofegante, tenso, acompanhando os dias de horror e os desdobramentos da maior tragédia climática de sua história. A devastação que atingiu centenas de municípios do Rio Grande do Sul (que poderia ter ocorrido no Rio, em São Paulo ou Alagoas) expôs o melhor e o pior de nós. De um lado, a generosidade de voluntários, vindo de todas as partes, empenhados em salvar vidas e ajudar aos desabrigados. De outro, a crueldade de marginais que invadiram casas, lojas e fazendas para saquear o que restava, e de predadores que, em meio ao caos, cometeram atrocidades até contra crianças.  Fragilizada como uma teia de aranha numa tempestade tropical, a nação oscila ao sabor da popularidade passageira e dos interesses pessoais de meia dúzia de figuras. A cada quatro anos, es

O bicho pegou

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O site americano  Vox  andou ensinando aos seus leitores como pronunciar uma nova palavra: "den-gay", diz o texto. Sim, finalmente os gringos descobriram como se fala “dengue”. Nós, brasileiros, que temos uma relação estreita com essa palavrinha desde cedo, mal podemos conter nosso entusiasmo com essa descoberta.   Ilustração: Ivan Cabral A dengue resolveu que não era mais suficiente ser apenas uma visitante ocasional em terras brasileiras e decidiu quebrar recordes dignos de entrar para o  Guinness , com dois milhões de casos confirmados até o mês passado, segundo nosso vigilante Ministério da Saúde. Pelo visto, o Aedes   aegypti  decidiu fazer hora extra este ano. Desconfio, inclusive, de que já trabalhe com  coach  e  influencers  próprios, após ter diversificado sua atuação, da chikungunya à zika.    Se deixou de ser notícia palpitante por aqui, agora é assunto nos jornais estrangeiros. O  Washington Post  fez questão de destacar que estamos cara a cara com uma crise de s

Profetas de uma paixão

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O escritor Graciliano Ramos, lá pelos idos de 1920, torcia o nariz para o futuro de uma paixão pela bola rolando de pé em pé. Preferia esportes hoje classificados como  vintage , como a corrida a pé – útil inclusive para o ofício de roubar galinhas –, além de  hobbies  como o porrete e a pega de bois pelos chifres. Chegou a sugerir que se deveria elevar a rasteira ao  status  de esporte nacional, dada a nossa predisposição inata para a malícia e o drible na ética.    Lima Barreto, outro escriba dos bons, também criticava a paixão pelo futebol, sob outro enfoque. Para ele, esse esporte seria um instrumento a mais de segregação racial. Se dentro das quatro linhas a coisa melhorou um pouco, de fora, os bárbaros continuam usando-o para vomitar sua bestialidade, como acontece de forma assombrosa em solo espanhol contra o jogador Vini Jr.   Mais que um jogo, para o cronista e dramaturgo Nelson Rodrigues o futebol era um retrato de nossa humanidade profunda, com suas grandezas e misérias. As

Perfume raro

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Quem de nós, navegantes com mais de seis décadas de águas revoltas, não se lembra da melancólica canção-poema “Rosa de Hiroshima”? Com esta música, o lendário grupo musical “Secos e Molhados” tocou cicatrizes, visíveis e ocultas, de crianças que, inocentes aos dramas dos adultos, sobreviveram ao bombardeio atômico no Japão.    Essas pequenas criaturas, transformadas pelos versos de Vinicius de Moraes em moleques calados e telepáticos, ou meninas cegas e desorientadas, trazem consigo o legado da radioatividade que se estenderá por gerações. E o poeta escolheu a flor para simbolizar o momento da explosão: uma imagem que evoca o trágico desabrochar de uma rosa. “Rosa com cirrose... Sem cor, sem perfume, sem rosa, sem nada”, ele pontuou.    Sim, tudo isso é muito injusto. O câncer infantil, líder cruel nas estatísticas de mortalidade entre nossas crianças, como atesta o Instituto Nacional do Câncer (Inca), prevê o doloroso surgimento de cerca de 8 mil casos anuais até 2025, atingindo joven

Amizade inabalável

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Nem pense, meu caro, que só porque você falhou ontem à noite a vida perdeu o sentido. Como não vai morrer tão cedo, é bom ir se  acostumando, pois haverá uma segunda vez, uma terceira... Ainda bem. Que sorte, hein? !  Ilustração: Umor Lembre que já se foram os dias em que éramos jovens e que nenhum de nós (exceto os mentirosos, que não são poucos e ainda irão dominar o mundo!) tem o fôlego e o vigor da meninada no estirão do crescimento.   Naquela época, as meninas hesitavam no último minuto, e eram trocadas por substitutas improváveis, como almofadas apaixonantes, travesseiros sedutores e a imaginação fértil na palma da mão (não havia  joysticks! ).  Agora, antes de mais nada, avalie se o problema não está escondido entre as suas orelhas, sob o que lhe resta de cabelos, talvez atormentado pela desilusão com os rumos da política partidária ou pelo lembrete de que o leão do imposto de renda não tem misericórdia e abocanha quase um terço de seus rendimentos. Se não for isso, puxe uma con

O insubordinado beijo da paz

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Uma relíquia fotográfica de lábios travados na efervescente  Times Square , coração de Nova Iorque, virou o epicentro de uma polêmica no Departamento dos Assuntos de Veteranos dos EUA, no mês passado. Proibiram a exibição do retrato pelos corredores sagrados dos prédios federais, alegando que o flagrante destoa dos "valores" da instituição.  Fotografia: Alfred Eisenstaedt/Life   Em memorando tão pomposo quanto um convite para a cerimônia do  Oscar  em  Hollywood , foi anunciado: "Esta medida, senhoras e senhores, é impulsionada pela nobre causa de reconhecer que a fotografia retrata um ato não consensual, desalinhado com nossa política de tolerância zero a assédio e agressão sexual”.   A imagem icônica, de 14 de agosto de 1945, capta o momento em que a enfermeira Greta Zimmer é surpreendida com um beijo mais animado do marinheiro George Mendonsa, na euforia pela rendição japonesa que marcou o término oficial da Segunda Guerra.    Ele que, durante o beijo, correu sério ri

Toda paixão tem o seu calvário

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O futebol tem seus momentos de profundo desencanto, como quando seu time está sofrendo uma derrota por dois a zero ainda no primeiro tempo e você está ali, acomodado no sofá, diante da TV, à espera do improvável milagre da virada. Faz sentido pessoas de todas as idades expressarem uma paixão tão arrebatadora por uma bola que simplesmente cruza a linha de gol? Que impacto isso teria em nossas vidas?   Reprodução/FaceBook Não posso falar pelos outros, mas, pessoalmente, percebi há décadas que, quando o Vasco entra em campo, o apito soa e a bola rola, as diferenças entre minha mulher e eu se tornam mais pronunciadas do que qualquer debate filosófico sobre a origem planetária do feminino e do masculino.  Com a chegada do Brasileirão 2024, nosso mundo vai se bifurcar novamente.  Ficarei horas grudado na telinha, enquanto nenhuma atividade específica fará com que ela se desligue por completo de outros papéis. Talvez só quando amamentava nossos filhos (há quatro décadas), sua atenção era plen

O fabuloso Toim Leitão, do Crateús

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Não posso esconder uma pontinha de inveja de alguns amigos que tiveram a sorte de crescer ao lado de um avô que não lia jornais, livros ou revistas, mas era mestre na arte de contar estórias, daquelas de arregalar os olhos e arrancar risadas, suspiros e lágrimas, até os netinhos caírem no sono, embalados pelas aventuras narradas. Os avôs que me couberam nesta vida, dois tipos duros e carrancudos, não esboçavam um sorriso nem por decreto ou se mangassem um do outro. Mas, sendo justo, nunca se viram.   Feliz de um amigo meu que volta e meia me fala de Toim Leitão, seu avô, um  cearense do Sertão dos Crateús de ascendência holandesa,  voz grave, sorriso largo, olhos quase fosforescentes, com seus imponentes 185 cm de altura, corajoso e forte feito Sansão, seu cavalo alazão.   Fotografia: Álbum de família Agricultor e vaqueiro, Toim parecia saído das páginas do livro “Alexandre e os outros heróis”, de Graciliano Ramos, de que mais tarde Chico Anysio tiraria uma casquinha para criar o memor