janeiro 22, 2025

Não deu certo, Brigitte

Há duas semanas, publiquei neste espaço uma crônica sobre Brigitte, ou melhor, Abigail Alves dos Prazeres. Lenda viva dos casarões do bairro portuário de Jaraguá, em Maceió, reinou como diva do cabaré Night and Day. Generosa e irreverente, ela deixou uma marca inapagável em quem teve o privilégio de conhecê-la. No início deste ano, aos 91 anos, Maceió se despediu dela com um cortejo único: lágrimas e celebração, embalados pela canção "Pagu", de Rita Lee e Zélia Duncan.

Entre as lembranças, emergiu o seu principal legado: uma carta escrita há três décadas, um manifesto irônico e sagaz sobre envelhecer com dignidade. Nela, Brigitte disparava conselhos mordazes: aceite a velhice sem drama, cuide da educação e da higiene e evite excessos – de maquiagem, minissaias ou nostalgias. Gastar sem culpa também fazia parte do roteiro, pois, segundo ela, heranças às vezes premiam a ingratidão. “Leia, trabalhe e viva sua vida”, pontuava, com a leveza e o humor que sempre a definiram. Sua despedida foi uma celebração de tudo o que ela foi e inspirou: rir de si mesmo e seguir em frente, sem arrependimentos, é o luxo mais acessível e transformador.


Minutos depois da publicação da crônica, tive que explicar a alguns leitores que o texto não era autobiográfico nem baseado em fatos. Tudo pura ficção. Mas não adiantou. Alguns insistiram que realidade e imaginação não poderiam andar tão próximas. Um deles até me fez uma proposta inusitada: descrever o encontro, no plano espiritual, entre Brigitte e Benedito Alves dos Santos, mais conhecido como Biu Mossoró, ou simplesmente Mossoró.



Ícone da noite maceioense, Mossoró foi proprietário do cabaré Tabariz – mais tarde, transferido para a parte alta da capital, rebatizado de Churrascaria e Boate Areia Branca –, um dos principais redutos da "cadeia produtiva do prazer" entre os anos 1950 e 1980. Seu estabelecimento atraía autoridades, boêmios, coronéis de engenho e estrangeiros de todos os recantos, sob regras inflexíveis: nada de contrabando ou drogas ilícitas. E sempre foi questão de honra sua pontualidade, tanto como contribuinte de impostos quanto no pagamento de duplicatas e outros compromissos bancários.


Ele também se orgulhava de nunca ter ocorrido um assassinato em sua casa noturna. Nem subornava ninguém, apenas lubrificava relações: uma dose de uísque aqui, uma água de coco ali, e a vida seguia seu curso. Suas “colaboradoras” eram escolhidas a dedo, com seu olhar clínico para beleza e comportamento. Em troca, oferecia moradia, comida e até assistência médica. Pai Véio, como também era conhecido, tinha sua ética particular: nunca transgredia a lei. Segundo ele, apenas a contornava, com jeito e todo respeito.


Muitas histórias. Conta-se que, em certo carnaval, ele adquiriu uma mesa para o baile de terça-feira em um famoso clube alagoano, para premiar três de suas funcionárias mais esforçadas. Resolveu acompanhá-las, mas foi barrado pelo porteiro, que alegou ordens da diretoria por conta das “acompanhantes suspeitas. Mossoró reagiu: “Peraí, meu filho, suspeitas são as que estão aí dentro. Essas aqui são putas legítimas, e das melhores...”.


Ele ousou até na publicidade, com um comercial exibido na extinta TV Rádio Clube de Pernambuco, cujo sinal alcançava Maceió. O anúncio, direto e inesperado, confundia inclusive turistas: "Churrascaria e Boate Areia Branca – a continuação do seu lar”. E nos fins de semana, vira e mexe era visto circulando devagar em um Ford Galaxie, acompanhado de jovens bem-vestidas e perfumadas, anunciando “novidades” à clientela. Morria de rir do cinismo de alguns de seus clientes que, limpando os óculos, fingiam não o ver passar.


Outro caso famoso envolveu sua ida ao dentista, que recomendou uma nova dentadura superior e outra inferior. Mossoró bateu no bolso e retrucou: “Tá vendo isso aqui, doutor? É dinheiro! Na minha boca só entra coisa superior...” E a fama do “Pai Véio” inspirou até o famoso Martinho da Vila, que, numa de suas turnês pelo Nordeste, criou um samba com um refrão incontestável:

"Só em Maceió, 

Só em Maceió
É que se pode vadiar
Com as meninas do Mossoró…”


Quase aos 80 anos, em 1995, ele ainda reinava na varanda de sua residência no bairro de Pajuçara, refletindo sobre uma vida em que cultura talvez tenha faltado, mas sabedoria nunca. Partiu levando consigo segredos que ninguém mais ousaria contar.

 

Voltemos à proposta que recebi para descrever o encontro entre Brigitte e Mossoró, no plano espiritual. A ideia é sedutora, ę poderia começar com ele estendendo os braços para recebê-la: “Minha filha, ver você só pode ser imaginação, porque não me recordo de seu perfume...”

 

Mas não daria certo. São estrelas de constelações distintas. Ela, leve como uma pluma que desafia o tempo. Ele, destemido como um timoneiro que não se dobra aos caprichos do vento. São fachos de luz que nunca se cruzam na eternidade da noite, embora iluminem o mesmo horizonte: a beleza e as contradições de sermos humanos, imperfeitos e, ainda assim, inesquecíveis. 

janeiro 15, 2025

Vendaval de ilusões

Você já deve ter ouvido falar dos infames três “P” presentes nos ensaios sociológicos: pobre, preto, da periferia. Antonio Domingos, ou simplesmente Tonho, baiano da gema, daqueles que conhecem cada pedra das ladeiras de Salvador, carregava esse estigma como uma segunda pele. Nascido em 1964, emergiu da barriga da miséria para o mundo em plena “revolução redentora” de um país que falava em milagre econômico e pregava o “ame-o ou deixe-o”.

Ainda menino, Tonho foi apresentado à amargura da exclusão social. Sua mãe, Dona Flor, costureira, equilibrava-se entre agulhas, dívidas e dúvidas para garantir o básico. Ele cresceu ouvindo que o futuro era luxo reservado a outros e que seu lugar no mundo era tão minúsculo quanto o cubículo de sonhos limitados de onde espiava, pela fresta da imaginação, os luxos que nunca experimentaria.

 

No início da adolescência, enquanto o Brasil se debatia entre a censura e a criatividade, a novela Pecado Capital arrebatava as telas. Escrevendo a trama às pressas para substituir a censurada Roque Santeiro, Janete Clair apresentou ao país as contradições do dinheiro fácil. Carlão, um taxista que encontra uma mala de dinheiro roubado, enfrentava o dilema moral entre devolvê-la ou sucumbir ao sonho burguês de resolver a vida da noite para o dia, em um golpe de sorte.

 

“Dinheiro na mão é vendaval”, advertia Paulinho da Viola no samba-tema da novela. Uma lição que Tonho aprenderia da forma mais literal possível. Aos 19 anos, em 1983, ele quebrou o estigma dos três “P” ao acertar sozinho na loteria: R$ 33 milhões em valores de hoje. Para um jovem que sobrevivia ao sabor da fome, a fortuna chegou como um milagre – ou uma maldição.

 

Há quem diga que todo ser humano é a soma não das suas decisões, mas do que, pensando melhor, opta por não fazer. O primeiro ato de Tonho foi exorcizar um trauma antigo. Expulso algumas vezes, pelos seguranças, das cercanias do hotel mais caro de Salvador, resolveu ali ocupar a suíte presidencial por prazo indeterminado, pagando à vista. “Agora é a minha vez de pisar no tapete macio”, teria dito. Mas a conquista não bastava. Como todo vendaval, sua nova vida varreu tudo à frente, deixando um rastro de excessos.

 

O que se seguiu foi uma saga digna dos três “B”: bacanais, bebidas e beldades. Festas barulhentas, repletas de loiras, morenas e ruivas, incomodavam até os hóspedes mais tolerantes. O gerente do hotel, pragmático, se fazia de mouco: “os azarados que se mudem!”. Roupas de grife, usadas apenas uma vez, descartadas e uma busca desmedida por prazeres efêmeros. 

 


Em uma noite particularmente solitária, Tonho encarou o travesseiro de penas de ganso como se ele pesasse toneladas. Pensou em Dona Flor, ainda curvada sobre a máquina de costura, sob a luz fraca de uma lâmpada, sustentando a mesma realidade de que ele fugira, mas não transformara. Enquanto ele flanava em tapetes macios, ela seguia pisando no pedal da máquina.


Lembrou-se do dia, ainda menino, em que Dona Flor esticou o tecido mais caro da loja para cortar um vestido de festa para uma cliente. Enquanto a tesoura dançava, escapuliu: “Um dia ainda iremos vestir coisa boa, meu filho”. Mas a promessa ficou presa entre a fita métrica e a tesoura, como tudo o que ela nunca teve para si.

 

E, como todo vendaval, o dinheiro passou. Com a devolução do primeiro cheque sem fundos veio a ressaca. A fonte secou e, com ela, refluíram os delírios de grandeza. Sobraram não apenas os olhares de reprovação, mas também o eco das oportunidades desperdiçadas. Milhares de meninos continuavam marginalizados nos becos e morros da Bahia. O milagre que os orixás concederam a Tonho evaporou como chuvisco no asfalto quente.

 

Questionado sobre o desperdício, ele retrucava: “Gastei e dei alegria pra muita gente, menos pra quem esperava que eu fosse salvar o mundo”. Mas o peso do travesseiro nunca desapareceu. Dona Flor não teve a casa que sonhava, enquanto seu filho transformava o curto reinado em um desfile de excessos.


Hoje, aos 60 anos, Tonho vive de bicos, inclusive como garçom em festas onde conta sua história com graça e leveza. “Já estive dos dois lados da bandeja”, brinca. Mas a sombra de Dona Flor, agora aos 96 anos, pesa mais que qualquer travesseiro de penas.


Tonho perdeu quase tudo, menos o que o luxo não pode comprar: a certeza de que, durante algum tempo, foi o rei e o bobo de sua própria corte de ilusões. Sua história, que poderia ter sido um ponto de virada, tornou-se um eco abafado na Baía de Todos-os-Santos. Restam o brilho no olhar e o riso fácil – não de quem venceu, mas de quem ousou sonhar.

 

 

janeiro 08, 2025

Brigitte não morreu

Quem me contou esta história foi um velho parceiro de trabalho, frequentador assíduo, na juventude, dos becos da Rua Sá e Albuquerque, no bairro de Jaraguá, em Maceió. Na primeira semana do ano, ele parecia flutuar no tempo, relembrando os casarões do bairro portuário, onde a vida pulsava muito antes das luzes frias dos postes modernos. Ali, as boates pareciam cenários de romances noir, com o eterno vai-e-vem da profissão mais antiga do mundo – numa época em que influencers ainda nem existiam. E a mais célebre delas era a lendária boate Night and Day.

Ele riu ao recordar o descompasso do coração sempre que alguém gritava: “Tintureira à vista!”. Não era peixe graúdo da Praia da Avenida da Paz, mas a viatura preta que patrulhava a zona portuária. Moleques com hormônios em ebulição, pegos bebendo, comendo (literalmente!) ou apenas absorvendo a vertigem do recinto, tinham destino certo: uma noite na cadeia, com ressaca e cigarros compartilhados com os detentos.


No meio daquela efervescência, reinava Brigitte – ou, como foi batizada ao nascer, Abigail Alves dos Prazeres. Diva dos casarões, decidiu rebatizar-se em homenagem à estrela francesa que brilhava nos sonhos de muitos jovens pelo mundo afora. Brigitte era generosa e vaidosa, dispensando o pagamento de alguns sortudos bem-apessoados, deixando atrás de si um rastro de suspiros e lembranças inesquecíveis.


Semana passada, Maceió deu seu último adeus a Brigitte. Aos 90 anos, ela foi internada após um infarto, mas não resistiu. No cortejo, organizado por meu amigo e alguns contemporâneos, uma Kombi com alto-falantes tocava Pagu, de Rita Lee e Zélia Duncan. Um verso, em especial, ecoava como prece à diva: “Minha força não é bruta, não sou freira nem sou puta...”.




Curioso com tamanha reverência, perguntei a meu amigo o motivo da homenagem. Ele sorriu, abriu um envelope pardo e revelou o maior legado de Brigitte: uma carta-manifesto escrita há mais de três décadas, endereçada às antigas colegas da velha guarda das boates – muitas delas, agora, matriarcas respeitáveis.


Enquanto organizava o cortejo, ele encontrou a carta, guardada com zelo durante anos. Era como se Brigitte estivesse presente, conduzindo a despedida com sua irreverência e sabedoria. Ele me mostrou o texto, dizendo: “É isso que ela queria que fosse lembrado. Não os casarões ou as festas, mas o que ela aprendeu e quis dividir com a gente”.


A introdução da carta era uma aula de estilo:
"Peço desculpas às destinatárias destas linhas – putas, como eu, aposentadas ou quase – que ainda acham que a velhice é só um estado de espírito. Digo logo: não é. Gostem ou não, velhice é um estado de acelerada decomposição do corpo e da mente..."


O restante do texto era um manual direto, irônico e prático, com dicas úteis a todas as pessoas que desejam envelhecer com dignidade:

  1. Aceite que dói menos. Nada de eufemismos como “melhor idade”. Velhice não é crime, só é constrangedora em alguns momentos.
  2. Ao telefone, nunca diga: “Ah, lembrou que tem mãe, hein?!”. A linha pode ficar muda para sempre.
  3. Boa educação é essencial. Nada de sons, cheiros e gestos desagradáveis.
  4. Chiclete? Só em casa. Nada de parecer uma vaca ruminando no caminho do brejo.
  5. Cirurgia plástica? Se quiser virar uma caricatura, vá em frente.
  6. Coma, beba e fale menos. Velhas sóbrias e magras são menos chatas e mais saudáveis.
  7. Cuidado com nostalgia e otimismo excessivos. Velhas tristes são insuportáveis; alegres demais, tolas.
  8. Evite maquiagem pesada. Já parecemos velhas; ninguém precisa exagerar na caricatura.
  9. Gaste com critério, mas gaste. Herança, quase sempre, premia ingratidão.
  10. Higiene impecável. Nem o diabo aguenta velha fedorenta e peluda.
  11. Jamais pergunte: "Estou gorda?" ou "Você me ama?". Você já sabe as respostas.
  12. Leia. Livros são aliados quando a conversa fica sem graça.
  13. Minissaias? Nem pensar. Isso vale também para blusas tomara-que-caia ou curtinhas, com o umbigo de fora. 
  14. Não custa lembrar: ter cara de rica envelhece.
  15. Netos? Ame à distância. Criar, só na ausência dos pais.
  16. Poupe os outros de histórias antigas. Elas só interessam a você.
  17. Sobrancelhas. Se fizer qualquer coisa de errado nelas, acaba com seu rosto.
  18. Trabalhe, se puder. Colegas de trabalho te toleram melhor que sua família.
  19. Viajar é bom; descrever viagens, não. Diga apenas destino e duração. Se alguém quiser saber mais, responda “sim”, “não” ou, no máximo, “depende”.
  20. Viva só a sua vida. Aceite que dói menos. Filhos e netos têm suas próprias jornadas.


O texto encerrava com um toque de mestre:
"Sei que minha capacidade de explicar termina onde começa a de vocês entenderem, mas já me dou por satisfeita em tentar."


Brigitte não morreu. Continua viva em uma lição que transcende a sua história: quando a maquiagem da vida desbota, o verdadeiro luxo é rir de si mesmo e seguir devagar, leve, sem eufemismos ou arrependimentos.

janeiro 01, 2025

Radares da alma

Faça chuva ou sol, todo começo de ano é sempre a mesma coisa: estradas lotadas, imprudência, pressa – e o número de acidentes dispara. Culpa de quê? De tudo um pouco: excesso de álcool, de carros, falta de paciência, desrespeito às placas de sinalização, entre outros. Em tempos de radares cada vez mais sofisticados, me pergunto: será que eles já começaram a enxergar além do asfalto? Será que, enquanto monitoram nossos carros, não acabam detectando também outros impulsos que aceleram dentro de nós?

Esses novos vigias eletrônicos deixaram de ser simples “caça-velocidade” para se tornarem uma espécie de “radares da alma”. Estão mais atentos do que sogra desconfiada: viraram "super fiscais" rodoviários, prontos para corrigir não só os apressados, mas qualquer criatura que ouse desafiar as sagradas leis do asfalto. E, ao fazer isso, parecem querer mais do que apenas reduzir acidentes: corrigem comportamentos, como mestres severos do trânsito. 



Em cidades como Curitiba e Salvador, esses xerifes digitais operam com sensores de alta precisão e inteligência que detectam infrações mais rápido que motoboy com pressa de ir ao banheiro. Monitoram tudo: desde o que você faz ao celular até aquele olhar enviesado para quem passa na calçada. E não basta uma paradinha na faixa para evitar o avanço no sinal vermelho. Agora, eles sabem quantas pessoas estão no carro, se você desafina cantando sua música favorita, se usa regata (sete pontos na carteira de habilitação!) ou, quem sabe, se limpa o nariz com os dedos.

No passado, para os imprudentes era bastante decorar os pontos críticos e dar aquela freada estratégica antes do flash. Hoje, os radares ajustam os limites de acordo com o fluxo e, nos horários de pico, até toleram o famoso “grudado no para-choque alheio”. Mas não se engane: continuam implacáveis com os afoitos que se acham a reencarnação de Ayrton Senna.

 

Essas maravilhas tecnológicas cobrem um raio de até 100 metros, flagrando quem ignora a faixa de pedestres, avança o sinal, faz conversões proibidas (de time ou religião, ainda pode!) ou exibe aos “adversários” o dedo médio (enquanto os outros são contidos pelo polegar) em um dos gestos de insulto mais antigos que se tem notícia. 

 

E não para por aí. Agora, parte dos radares calculam a velocidade média entre dois pontos. Se você completa o trecho mais rápido que o esperadoparabéns: além da multa, levará de brinde pneus desgastados pelo susto na freada. Na BR-050, em Minas Gerais, por exemplo, onde o sistema também está em teste, a concessionária promete mais segurança e uma “gestão” do trânsito – ou, pelo menos, mais arrecadação. 

 

Até a instalação desses espiões sofisticados sofreu uma repaginada. Esqueça os velhos sensores que exigiam quebradeira no asfalto. Agora, câmeras de alta definição fazem o trabalho sujo, registrando infrações, fluxo e até perfis de comportamento no trânsito. Um verdadeiro Big Brother rodoviário.

 

Os chefões da Velsis, empresa responsável por esses equipamentos, dizem que estão trazendo mais precisão à gestão do tráfego. Por enquanto, os radares só podem monitorar, já que multar por velocidade média ainda depende de ajustes no Código de Trânsito. Mas, com a fome insaciável de toda máquina pública, não se surpreenda se a regulamentação chegar antes que os motoristas se adaptem.

 

O avanço tecnológico é fascinante, mas o que realmente importa é o simbolismo por trás disso. Estamos vivendo uma nova era de fiscalização, onde os radares não apenas vigiam infrações. Eles moldam comportamentos, exigem autocontrole e, de certo modo, tentam “educar” o motorista. É como se esses mentores digitais estivessem ali para nos ensinar não só a dirigir, mas a viver melhor. Pense: superar impulsos, ser paciente e incorporar a direção defensiva como um estilo de vida – pelo menos até onde o saldo bancário aguenta.

 

E se essa lógica fosse além do trânsito? Já imaginou radares éticos instalados nos corredores do serviço público, flagrando ultrapassagens nos limites da moralidade, contratos fantasmas cruzando sinais vermelhos e promessas vazias estacionadas na mesmice secular de nossas desigualdades sociais?

É claro que radares éticos enfrentariam desafios. Quem garante que esses “superfiscais” não seriam manipulados por aqueles que já deveriam estar com a carteira de moralidade cassada? Talvez fosse preciso algo mais profundo: uma tecnologia que não apenas vigiasse, mas que despertasse a consciência individual de cada um. Porque, a rigor, o radar mais implacável ainda é aquele que carregamos dentro de nós.

Nossa consciência – silenciosa, inescapável – não cobra multas, mas também não aceita “jeitinhos”. Ela não desvia o olhar diante de infrações morais ou aquelas pequenas trapaças cotidianas. Gostemos ou não, está sempre ali, piscando, nas estradas que escolhemos seguir. 

Se os radares do asfalto nos ensinam a frear, talvez o seu maior legado seja nos lembrar de que precisamos dirigir nossas vidas com maturidade e sabedoria – mesmo quando ninguém está olhando.


dezembro 25, 2024

Que chapéus usaremos em 2025?

    Se você é curioso sobre o mundo publicitário e sua ligação com a psicologia, já deve ter ouvido falar de Carl Gustav Jung. No início do século passado, este suíço dividia cervejas, fondue e ideias com o austríaco Sigmund Freud – antes de se tornarem desafetos cordiais. Além de ser um dos pais da psicanálise, Jung deixou teses que transcenderam os divãs e hoje circulam por campanhas publicitárias, testes de personalidade e até conversas do RH das empresas.

    Entre suas contribuições mais instigantes está a teoria dos arquétipos: padrões universais de comportamento e emoção que atravessam culturas e eras. Esses moldes revelam como nos posicionamos no mundo e fazem parte do inconsciente coletivo – aquele lugar onde desejos e medos se misturam como um armário desorganizado, bagunçado ainda mais pelas redes sociais.

 

    Não é à toa que os arquétipos são hoje ferramentas indispensáveis para quem quer vender mais, seja uma bebida, um hambúrguer ou um perfume. Quem nunca associou um carro à potência ou uma caneta de luxo ao sucesso? Pior: o cigarro com a ideia de bravura, coragem e virilidade. Tudo orquestrado para cutucar emoções escondidas. 

    Mas será que podemos nos resumir a um único arquétipo? Claro que não. Somos criaturas multifacetadas, tão dinâmicas quanto as pinceladas de Picasso em “Mulher com Chapéu”. Cada um de nós carrega um padrão dominante e outros secundários, como uma coleção de chapéus que escolhemos usar (ou esconder) conforme o momento.




Aqui está uma dúzia desses “chapéus” que podemos experimentar – ou já usamos sem perceber:


O Amante

É aquele que vê poesia em tudo. Fotografa flores no trânsito, escreve versos em guardanapos e chora com comerciais apelativos. Valoriza conexões emocionais e busca ser admirado. Mas quando exagera, corre o risco de perder a própria essência tentando agradar a todos. 

 

O Criador

Sempre tem uma ideia nova na manga: "E se fizéssemos isso de outro jeito?". Seu entusiasmo é contagiante, mas nem sempre termina o que começa. Tão obcecado buscando o ideal, esquece de celebrar o que já é bom. 

 

O Explorador

Nômade por natureza, detesta rotina e vive buscando novos horizontes. É aquele que pede demissão numa preguiçosa segunda-feira para abrir uma pousada na praia – mesmo sem planejar. Seu amor pela liberdade é inspirador, mas pode levar a escolhas impulsivas (e boletos atrasados, claro).


O Governante

É líder onde quer que esteja, seja na reunião de trabalho ou na pelada no fim de semana. Precisa ter tudo sob controle, mas sua obsessão por poder pode afastar aliados, especialmente quando ignora outras opiniões para impor o próprio método.

 

O Herói

Desafia limites, enfrenta medos e inspira os outros com sua coragem. É o tipo que acorda às 5h para correr ou se oferece para descascar um abacaxi de terceiros. No entanto, sua impulsividade pode levá-lo a abraçar causas que não entende – e depois se perguntar onde foi que se meteu.

  

O Inocente

Com a fé de quem acredita que o sol sempre nasce mais bonito no dia seguinte, prefere crer que uma hora tudo vai se resolver, mesmo diante de um problemão. É gentil e evita conflitos, mas esquece que, para mudar a maré, é preciso remar. Muito!

  

O Mago

Fascinado por reflexões, transforma desafios em aprendizados e sempre encontra um "lado bom" no caos. No entanto, sua obsessão por questões profundas pode isolá-lo, fazendo com que os outros o rotulem como alguém que "viaja demais".

 

O Órfão

Empático, cativa aliados ao compartilhar histórias de superação. Mas sua busca constante por apoio externo pode paralisá-lo em momentos decisivos, pois não consegue dar um passo sem a validação alheia.

  

O Prestativo

Sempre disposto a ajudar, mesmo às custas do próprio descanso. Pequenos gestos são a sua marca, mas sua necessidade de reconhecimento pode trazer frustração. 

  

O Rebelde

Questiona padrões e inspira mudanças radicais. Mas sua ousadia pode se tornar imprudência quando deixa a paixão falar mais alto que a razão.

O Sábio
Ama o conhecimento e tem sempre uma opinião bem fundamentada. Contudo, seu perfeccionismo intelectual muitas vezes o desconecta da realidade, perdendo o timing por estar “pesquisando só mais um pouco”.

O Tolo

Com humor afiado, desconstrói tensões e arranca gargalhadas. Porém, quando não percebe o limite, transforma momentos sérios em piadas fora de hora, correndo o risco de parecer insensível.


    E você, com quais “chapéus” se vê na virada do Ano Novo? Se acha que três não bastam, não se preocupe. Somos tanto aquilo que vemos quanto o que o mundo reflete de volta, como espelhos com várias faces.

    Talvez o segredo esteja justamente em aceitar esses reflexos, dinâmicos e distorcidos, sempre prontos a surpreender – inclusive a nós mesmos. 

    Que em 2025 cada um de nós encontre os chapéus que mais nos desafiam e nos completam. E que a gente saiba a hora de trocá-los, claro.

dezembro 18, 2024

Ja é Natal, de novo!

Com suas canções, luzes e tradições, o Natal tem a estranha mania de apertar o botão de replay de nossas memórias mais profundas. Não importa o quanto o mundo mude, algo nele nos arrasta para cenas antigas, como um filme que insistimos em rever ou como quem folheia um álbum de fotografias buscando entender o que passou – e o que ainda está por vir.

Quem, como eu, já dobrou a esquina da boa esperança, tem o direito de contar e recontar histórias sem se preocupar com os céticos que duvidam que elas possam revelar novos ângulos. Sabe que o Natal é uma época que nos força a olhar para dentro, revisitando quem fomos, quem somos e quem ainda podemos ser. É um recomeço disfarçado de rotina, um lembrete de que a vida se move em círculos, mas sempre nos dá a chance de fazer diferente na volta seguinte.

Desde que habitávamos as cavernas, somos todos contadores de histórias. Primeiro, pintávamos as paredes. Depois, contávamos mentiras e verdades ao redor do fogo, escrevíamos livros que eram lidos até pelos mais jovens (prática incomum, ultimamente). Nossas histórias agora circulam pelas redes sociais ou ganham vida em telas de cinema. E poucas invenções conseguem tocar tão profundamente o coração humano quanto o cinema, essa mistura fascinante de imagens, sons e emoções que nos faz lidar com a realidade com os olhos da imaginação.

Confesso um arrependimento que vai me atormentar para o resto da vida: nunca fui cinéfilo, como meus amigos Antonio Fonseca e Luiz Andreola. Vi bem menos filmes do que gostaria e, nos últimos anos, me afastei ainda mais do escurinho das salas de cinema. Mas os poucos filmes que me marcaram seguem comigo, com histórias que me cobram para ser recontadas. Um deles, encontrado há 26 anos numa videolocadora (sim, elas existiram!), tornou-se parte do meu pequeno acervo: A Felicidade Não se Compra (It’s a Wonderful Life, 1946).

 


Dirigido por Frank Capra, o filme nasceu modesto, quase franciscano para os padrões de Hollywood, e parecia destinado a ser apenas mais uma fita esquecida nas prateleiras empoeiradas das locadoras. Mas, ironicamente, sua mensagem universal sobre propósito e impacto na vida comunitária atravessou gerações, consagrando-o como um clássico, mesmo que isso nunca tenha sido o plano inicial de seu diretor, financiador, produtor e um dos roteiristas.  

A primeira vez que o assisti, virou um divisor de águas no rio de minha vida. Dias depois, próximo do Natal de 1998, conversava com alguns colegas de trabalho sobre o que poderia ser feito na temporada seguinte junto a pequenas comunidades no interior pernambucano. Nos reunimos numa sala e projetei a história de George, um homem à beira do desespero, salvo por Clarence, um anjo em treinamento. Clarence, ansioso para ganhar suas asas, mostra a George como seria o mundo se ele nunca tivesse existido. 

O impacto foi impressionante: lágrimas discretas, reflexões compartilhadas e um renovado senso de propósito para enfrentar os desafios de 1999, o que me estimulou a replicar a iniciativa na virada do século, na Bahia, para onde fui transferido.

É impossível assistir ao filme e não se perguntar: qual é o impacto que deixamos na vida daqueles que cruzam o nosso caminho, seja nos momentos bons, nos ruins ou nos aparentemente insignificantes? Numa linguagem simples, mas poderosa, o filme sacode as camadas mais adormecidas de nossa consciência, convidando-nos a repensar relações, escolhas e até nossa conexão com o Planeta.

Como dizia Charles Chaplin, o importante no cinema não é a realidade em si, mas o que dela a imaginação pode extrair. Talvez por isso alguns filmes, vistos pela segunda, terceira ou enésima vez, continuam despertando novas camadas de percepção sobre o que há de melhor – e pior – em nós, como se guardassem segredos à espera do momento certo para serem revelados.

Já gostei de ganhar agendas no Natal. Eram como pequenas promessas encadernadas de que eu estaria aqui pelo menos até o próximo ano – e, quem sabe, um pouco mais, já que sempre vinham com janeiro do ano seguinte. Volto no tempo e vejo que 26 anos passaram em um esfregar de olhos.

A vida se move ligeira, e o Natal já está batendo à porta, de novo! Não é justo, mas é inútil discutir com o tempo. Talvez o truque esteja em aceitar que, como bons filmes, ela precisa ser revisitada. Porque é assim, revendo velhos filmes e memórias, que aprendemos a escrever novos roteiros e a dirigir os próximos capítulos de nossa própria história. 


dezembro 11, 2024

O dilema de Epaminondas

Epaminondas – nome que já entrega a idade, pois ninguém mais batiza um filho assim – estava no dentista. Entre anestesia e limas especiais, o doutor percebeu que havia algo mais pesando sobre o paciente do que a remoção da polpa dentária infectada no tratamento de canal. Algo que ia além do físico e parecia afetar a alma.

 

Com a habilidade de quem já ouviu de tudo enquanto mexe em bocas alheias, o doutor quis saber o que estava acontecendo. Epaminondas relutou, mas abriu: Dolores, sua esposa, passara por uma delicada cirurgia na coluna e, entre as restrições do pós-operatório, estavam proibidos “pilates, caminhadas e ‘intimidades’ por 60 dias”. 

– Acho exagero – comentou o dentista, rindo – Nunca passei de três ou quatro noites seguidas, mas vá lá...

 

Recomendou paciência, bom senso e, se possível, a contratação de uma boa diarista para aliviar o fardo das tarefas domésticas. Também frisou a importância de seguir à risca as orientações do cirurgião, poupando Dolores de dores e tonturas.

 

Ilustração: Umor (Uilson Morais)


Brincalhão, o dentista resolveu entrar num campo espinhoso: o celibato forçado de Epaminondas. Desfiou um rosário de alternativas para a vida amorosa, mesmo sabendo que ele, reconhecido pelos amigos por sua fidelidade "constrangedora", jamais trocaria a tranquilidade do lar por aventuras de ocasião.

 

Ainda assim, insistiu. "Evite laxantes nos dias que antecedem qualquer saliência" – advertiu, rindo. "Uma tosse fora de hora pode comprometer até as restaurações antigas!". Depois sugeriu almofadas, “para poupar os joelhos” – uma recomendação que Epaminondas dispensou, sem entender a necessidade.


A mais inusitada foi anotar o nome da parceira na palma da mão. "Vai que você esquece com quem está no calor da luta" – completou, descarado.

 

Por fim, alertou: "Se você ouvir algum gemido, não se iluda, amigo: é deboche, sacanagem! E se conseguir chegar lá, nem cogite a prorrogação do jogo. Apesar de uma 'bengala química', o risco de torcicolo ou lombalgia é altíssimo".

 

Epaminondas ouvia tudo em silêncio, o rosto anestesiado permitindo apenas um esboço de sorriso sem graça. Ao se despedirem, o dentista ainda jogou a pá de cal: "Se der certo, espalhe entre os amigos. Mas, se der errado, deixa entre nós. Só aviso que sou péssimo pra guardar segredo".

 

Pensando naquelas ideias malucas, Epaminondas saiu confuso do consultório, mas logo balançou a cabeça, decidido: não trairia Dolores de forma alguma, depois de tanto tempo dividindo o leito conjugal. Como iria encarar as filhas e as netas?

 

No caminho de casa, o motor do carro falhou. Ele estacionou e abriu o capô, tentando identificar o problema. Enquanto mexia nas peças, sem saber exatamente o que procurava, a aliança escorregou de seu dedo sujo de óleo e desapareceu num bueiro. Epaminondas ficou parado, vendo o símbolo do compromisso sumir. Então, uma dúvida o atravessou, do cocuruto aos solados: seria um sinal? Destino ou acaso?

 

Mas a imagem de Dolores logo lhe veio à mente. No devaneio, ela o encarava no sofá:
– Tirou a aliança por quê? – ela perguntaria, com a sobrancelha arqueada.
– Não é o que você tá pensando...
– Ah, bom... Tá me chamando de otária?
– Foi o carro... Um cabo soltou... A aliança caiu no bueiro – explicaria, suando.
– No bueiro ou no ralo de um motel?

 

No devaneio, Dolores se levantou e encerrou a conversa como só ela sabia fazer: "Quem vai querer um velho teimoso e sem dinheiro feito você? Anda, vai tomar banho antes que a janta esfrie".

 

Debaixo do chuveiro, Epaminondas deixou a água levar a sujeira e, com ela, suas dúvidas. Nada era mais confortável do que a paz de olhar nos olhos de Dolores e não carregar o peso de decepcionar alguém com quem, há quatro décadas, divide o pão, o vinho e os boletos. 

 

A cena trouxe Epaminondas de volta à realidade. Riu sozinho, fechou o capô e deu partida no motor. Assim como ele, o carro roncou teimoso, aceitou a marcha e seguiu em frente, com alguns arranhões na lataria, mas sem precisar de maiores reparos. 

 

E disse a si mesmo: Dolores deve gostar dessa história, ou talvez nem dê importância, contanto que continuemos respeitando as restrições do pós-operatório. O grande desafio, a esta altura, é acordar sem dores adicionais. No corpo e na alma, claro.

 

Mais tarde, enquanto relatava a aventura a Dolores, omitiu a parte da aliança. Não por desonestidade, mas porque, naquele instante, a única verdade que importava era o sorriso tranquilo da esposa.

– E o carro? — perguntou ela.
– Anda meio teimoso, mas vai longe ainda. Igual a gente…

Dolores riu, ajeitando a almofada nas costas. E Epaminondas compreendeu que os sinais nem sempre vêm do universo. Às vezes, só lembram que, com ou sem aliança, a fidelidade é um pacto com algo maior: a opção de compartilhar a vida, com ganhos e perdas, até onde o motor aguentar.


 

dezembro 04, 2024

O peso e a graça de um nome

Nomes são mais que palavras assentadas no Cartório de Registro de Pessoas Naturais. Eles carregam histórias, sonhos e, às vezes, confusões. Podem ser fardos, heranças ou até inspirações. Por isso, quando uma amiga me perguntou de onde vinha "Hayton" (leia-se “ái-ton”), fui levado a refletir sobre as camadas que um nome transporta e as surpresas que ele pode esconder.

Ilustração: Sidney Falcão

 

Meu nome, na verdade, é um sobrenome de origem anglo-saxônica. Foi escolhido por meu pai em homenagem a um inesquecível amigo que o orientou no início da carreira profissional. Parece leve, mas imaginem o peso das acrobacias linguísticas das pessoas que precisaram me chamar. 


No primeiro dia de aula, por exemplo, era sempre um desfile de variantes fonéticas: “Ail-ton, Ei-ton, Rai-ton, Rei-ton, U-áite...”. Tudo, menos "Ái-ton". Se aquele dito popular  "Mate o homem, mas não troque o nome"  fosse levado ao pé da letra, eu já estaria morto. No entanto, bastava uma breve explicação. Hoje, dou risada das confusões, mas reconheço: um nome não é só letras e sons; é um mapa em constante atualização, com caminhos traçados pela história pessoal e coletiva.

 

Por falar em história, dias atrás me deparei com uma intrigante. Fábia Godoi, influenciadora com 70 mil seguidores, viralizou ao compartilhar um "drama" de família: seu marido registrou a filha com um nome nada convencional. Em vez de “Alice”, ele voltou do cartório com “Alici”. Entre indignação e risos, o vídeo atingiu dois milhões de visualizações, e Fábia desabafou: “Quando ele chegou com o papel, quase tive um treco!”. Confesso que não entendi. Afinal, se “Fábia” e “Alici” são nomes igualmente exóticos, de onde vinha tanto espanto?

 

A ARPEN Brasil (Associação dos Registradores de Pessoas Naturais) revelou à revista Exame, no final do ano passado, uma lista com alguns dos nomes mais curiosos já registrados nos cartórios tupiniquins. Entre eles, Aeronauta Barata, Chevrolet da Silva Ford, Dolores Fuertes de Barriga, Esparadrapo Clemente de Sá, Maria Privada de Jesus, Necrotério Pereira da Silva, Pacífico Armando Guerra e Renato Pordeus Furtado não deixam dúvidas: a criatividade dos pais brasileiros não tem limites.

 

Embora essa criatividade nos nomes seja livre, há uma lei que limita escolhas extravagantes. Felizmente, quem deseja mudar seu nome pode fazê-lo diretamente em um cartório. Mas é necessário ser maior de idade e arcar com uma taxa, que varia entre R$ 100,00 e R$ 400,00, dependendo da região.

 

Penso no meu próprio legado familiar. O sobrenome “Jurema” vem de minha mãe, uma cabocla paraibana por quem meu pai se apaixonou, na metade do século passado, ouvindo "O Cantor das Multidões", Orlando Silva. De origem tupi-guarani, ecoa raízes indígenas, evocando uma planta espinhosa usada em rituais e uma guerreira venerada na Umbanda. Já o “Rocha”, herdado de meu pai, sugere firmeza – algo que, ironicamente, nunca encontrei em mim. 

 

Posso imaginar a cena no cartório de Itabaiana (PB): meu pai, orgulhoso, registrando o segundo rebento da prole, primeiro homem. Além do nome, na época também se anotava a "cútis". No caso, ficou “cútis morena”. Anos depois, um querido amigo meu, de pele ainda mais escura, mostrou seu registro com ar gozador: “cútis branca”. Minha mãe, espirituosa, rebateu: “Ôxe... Pelanco de urubu também nasce branco!”. Esses rótulos de pele, assim como os nomes, são tentativas de simplificar algo bem mais complexo e mutável: nossa identidade.

 

Meus pais poderiam ter surfado naquela onda bem brasileira de misturar os próprios nomes, “Agostinho” e “Eudócia”, para batizar os nove filhos. Que tal "Eutinho" para mim? Seria overdose para mamute! Talvez “Agostócia” até agradasse uma de minhas irmãs. Felizmente, foram por outro caminho, e assim botei o pé no mundo com um nome, digamos, diferente.

 

Já meu irmão Hélder teve mais sorte: foi batizado em homenagem a Dom Hélder Câmara, um nordestino indicado algumas vezes para o Prêmio Nobel da Paz, defensor dos direitos humanos durante a ditadura militar. Um peso histórico que ele, por escolha ou acaso, nunca se esforçou muito para honrar politicamente. A verdade é que isso acontece com mais frequência do que se imagina. Nem sempre o nome inspira o legado.

 

Com o tempo, aprendi a aceitar as confusões em torno do meu nome. 

 

"Deixando a profundidade de lado (palavras do sábio cearense Belchior)", eu vos direi no entanto: nomes são etiquetas temporárias. Servem apenas de tiro de partida para a grande correria, dando pistas sobre de onde viemos, mas não nos definem na fita de chegada. 


O que fica não são letras nem sons, mas as marcas que deixamos na memória de quem cruzou nosso caminho na divina comédia humana escrita por todos nós.

novembro 27, 2024

Arte ou macacada?

Na última quinta-feira, enquanto tentava acompanhar uma aula por videoconferência, recebi de meu amigo, o espirituoso jornalista e escritor Francicarlos Diniz, uma mensagem enigmática:

– Vai render pano pra manga. Ou melhor, banana...
– A preço de banana? – devolvi, brincando, mesmo sem entender aonde ele queria chegar.
– De bananada... – ele retrucou.
– Aí pode embananar tudo... – insisti, esperando o troco.
– E ainda dizem que nós é que somos a República das Bananas...

 

Achei que ele falava da coleção Diário de um Banana, que acaba de chegar ao 19º livro, Baita Lambança. A série, escrita por Jeff Kinney, já vendeu mais de 290 milhões de exemplares em 70 idiomas. Mas não: Francicarlos se referia a outra “banana” que dominava as manchetes.

 

Uma obra de arte – com o perdão da palavra! – composta por uma simples banana presa à parede com fita adesiva foi vendida por absurdos US$ 6,2 milhões (cerca de R$ 35 milhões). O comprador foi Justin Sun, magnata das criptomoedas. A peça, intitulada Comediante, do italiano Maurizio Cattelan, reacende a velha questão: afinal, o que é arte?


A banana, que já havia causado furor na Art Basel de Miami em 2019, repetiu o feito na Sotheby’s de Nova York, onde, após lances frenéticos, superou a estimativa inicial de US$ 1,5 milhão. Justin Sun, além de pagar em criptomoeda, ainda herdou a obrigação de substituir a banana quando ela apodrecer. Para ele, porém, não era só uma fruta pendurada: “É um fenômeno cultural que une arte, memes e a comunidade cripto”, declarou, como quem descascava uma verdade universal.

 

A ironia não passou despercebida. Especialistas compararam a peça a Autorretrato, de Banksy, e à provocação histórica de Marcel Duchamp, com sua Fonte – o icônico urinol de 1917. Foi aí que Francicarlos, implacável, disparou mais uma: "Esse Duchamp, que de banana não tinha nada, começou com essa macacada.


Ilustração: mosaico de obras de Catellan, Banksy e Duchamp


De fato, Duchamp inaugurou o ready-made, transformando objetos comuns em arte e confundindo os limites do que pode ser exposto. Décadas depois, Andy Warhol imortalizaria a banana como ícone da arte pop, estampada no álbum inaugural da banda The Velvet Underground. E agora, Cattelan estica ainda mais essa corda, pendurando uma obra absurdamente simples e milionária.


Enquanto pensava nisso, lembrei de Bienal, a canção de Zeca Baleiro que satiriza o mundo da arte contemporânea com versos como “fios de pentelho de um velho armênio” e “asa de barata torta”. É o retrato ácido de um elitismo artístico que aliena o público comum – aquele que, como a mãe do narrador da música, exclama: "Meu filho, isso é mais estranho que o cu da gia e muito mais feio que um hipopótamo insone". Noutras palavras: é arte ou macacada?

 

Recordei também um episódio com meu amigo Anchieta, cearense de língua afiada, numa exposição no CCBB, em Brasília. Ele ficou cara a cara com cilindros metálicos pintados de vermelho que ostentavam uma etiqueta de obra de arte. Olhou para mim e cochichou: "Tá parecendo o tonel enferrujado em que a gente guardava água lá no quintal de casa, quando chovia no Ceará".

 

Voltei à aula, mas Francicarlos, certeiro, lançou uma última farpa antes de desaparecer: "Agora preste atenção à aula que o bedel tá de olho em você!".


Acatei o conselho, mas entre bananas milionárias e velhos amigos – não os comparo, que fique claro! –, tento decifrar o mundo de hoje que temos pro jantar. Só me falta aparecer alguém, inspirado em Zeca Baleiro, para “misturar anáguas de viúva com tampinhas de pepsi e fanta uva num penico com água da última chuva...”

 

Arte ou macacada? Talvez o verdadeiro espetáculo esteja em nos fazer rir do absurdo, mesmo que, no fundo, o riso seja de nós mesmos. Entre criptomoedas e valores intangíveis, penso até no camburão que deveria estar na porta da Sotheby’s, de Nova York, não para prender os lances da imaginação, mas os exageros da lógica. Mas tudo leva a crer que dinheiro cai do céu para essa turma!

 

Desde a última quinta-feira, todas as manhãs, quando acordo, enquanto olho o espelho do banheiro, tento decifrar o que passa na cabeça do velho ranzinza que me encara. Seria ele um ready-made ou apenas mais uma peça deslocada numa paisagem modernosa?

 

Na corda bamba, lá vamos todos nós, entre a genialidade e o absurdo, pendurados como bananas numa galeria que insiste em chamar de arte aquilo que só reflete a loucura deste admirável mundo contemporâneo.

novembro 20, 2024

Fome, fúria e o mistério do pavão

Não sei vocês, mas sou daqueles que, ao ver um jornal ou revista antigos, não resiste à tentação de revisitar ecos de outros tempos. Quando vejo um recorte interessante, mergulho profundo numa viagem quase sem volta: o que terá acontecido com os protagonistas dessas histórias? Onde estão agora? Foram felizes? Deram certo ou desapareceram nas entrelinhas da vida?

 

Dias atrás, me deparei com um recorte da Folha de São Paulo, de 12 de janeiro de 2004, com um título tão surreal quanto o enredo: “Homem é espancado após matar pavão em praça no centro do Rio de Janeiro”.

 

Ilustração: Umor (Uilson Morais)

Paulo Roberto de Oliveira, 37 anos, desempregado e faminto, perambulava pelas ruas quando decidiu que um pavão, mais ornamentado que o próprio Clóvis Bornay no Carnaval, seria seu jantar. Não sabia que a ave, mais que um enfeite da fauna urbana, era mascote da comunidade de travestis da Praça da República.

 

Foi aí que entrou em cena o "bloco da fúria". Ao verem Paulo carregando o pavão desfalecido, os travestis iniciaram um verdadeiro carnaval de pedradas, pontapés e tapas. No desfecho, digno de seriado de TV, o miserável acabou com o braço preso às grades da praça, pendurado como um Judas em Sábado de Aleluia, até ser resgatado pelos bombeiros para ser indiciado por crime ambiental. Já os travestis, sumiram antes que pudessem ser chamados para esclarecer o "quase abate" de outro animal, da espécie supostamente o mais racional de todas. 





Já se passaram mais de duas décadas. O que aconteceu a Paulo? Está vivo aos 57 anos? Tem filhos e netos? Entrou na política? Fez carreira como influencer? Continua pulando grades na madrugada ou encontrou algum emprego entre uma reforma trabalhista e outra, podendo agora pagar boletos e impostos, ser chamado de consumidor e contribuinte? Quem pode me dizer? 

 

É certo que o desemprego (ou emprego informal) continua um monstro de setenta cabeças, crescendo com uma voracidade comparável à fome daquele fatídico dia, embora as estatísticas oficiais nem sempre reflitam esse estado de coisas no lado debaixo da Linha do Equador.

 

Mas não é só o destino de Paulo que me intriga (uma entre 250 mil almas em situação de rua no Brasil), e sim também o destino do coitado do pavão. Aquela inocente criatura, que poderia ter saciado a fome de outros viventes, acabou despertando a fúria desmedida de outros. Terá ele deixado algum legado proteico digno de nota? Chegou a transferir a sua carga genética para alguns filhotes?

 

Com meia dúzia de interrogações na cabeça, me transporto à canção “Pavão Mysteriozo” (da trilha sonora da telenovela global Saramandaia, de Dias Gomes), do cearense Ednardo que, nos anos setenta, carregava em suas asas críticas veladas à realidade opressora do regime militar.

 

O pavão daquele tempo não era nenhum desses jogadores de futebol chatos, deslumbrados e presunçosos, estrelas de um mundo midiático que se cotam acima daquilo que realmente valem. Nem alguns emplumados de gravata e paletó que conheci ao longo da minha vida profissional. O pavão de Ednardo era uma bela metáfora de voo, de liberdade, de fuga de uma realidade sufocante. E o folheto de cordel que inspirou o artista cearense (“O Romance do Pavão Misterioso”, publicado em 1923, por José Camelo de Melo Resende), tinha voltado a circular em um Brasil que sonhava voar para longe da repressão.

Gráfico

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa


Vinte anos depois, talvez Paulo, se ainda circula por aí (caso tenha se poupado do vexame de morrer tão moço, como canta Ednardo!), seja só mais um rosto perdido entre estatísticas que servem ao conforto de quem vive fora da linha de fogo. Sua fome e sua fúria seriam testemunhas silenciosas de um sistema que perpetua a exclusão e alimenta a indiferença.

 

E o pavão? Mais do que uma ave, simboliza o orgulho ilusório de uma nação que valoriza cores vibrantes, mas esconde sob as penas a escuridão de quem ignora os vulneráveis. Como no cordel de José Camelo, esse pavão também tenta voar para longe, mas suas asas estão presas às grades da desigualdade, eternizando a miséria.

 

E nós, prostrados em nossos sofás, seguimos assistindo a esse drama social como se fosse só mais um episódio de uma novela que nunca termina. Talvez sejamos os verdadeiros pavões: encantados pelas aparências de um progresso ilusório, enquanto a fome, a injustiça e a exclusão permanecem. Fechamos os olhos, mas a fome – não só de comida, mas de dignidade – continua nos encarando.

 

Vou parar com essas "viagens" sobre recortes de jornais e revistas antigos. Já basta o noticiário do dia. Se bem que o problema não está em revisitar esses recortes, mas em nossa incapacidade de transformar as histórias que eles contam. Porque, a rigor, todo recorte é um espelho: reflete o que fomos e nos mostra o que ainda podemos ser.



novembro 13, 2024

Traquinagens do acaso

Não posso garantir, mas desconfio que, em 1949, o imigrante libanês José Fares Haddad Lupus tenha sido vítima de uma das clássicas gafes datilográficas dos cartórios de antanho. Lá em Orós, no interior do Ceará, ao registrar o caçula, o nome pretendido era Raimundo Wagner. Saiu de lá, no entanto, com um Raimundo Fagner. Dona Francisca, a mãe, deve ter suspirado fundo. No fim, quem diria, o erro se revelou um golpe de sorte: o menino cresceu com um nome diferente e virou estrela de primeira grandeza, um dos maiores cantores e compositores do Brasil, dono de mais de 40 álbuns e uma legião de fãs espalhados pela América Latina.

 

Algo parecido aconteceu anos depois, em Penedo, Alagoas. Um amigo meu quase se chamou Wagner, mas seu pai (que nunca soube do caso envolvendo o imigrante libanês) saiu do cartório com a certidão de nascimento do filhão Wanger. Pode uma coisa dessas? O escrivão de Penedo superou o de Orós no quesito criatividade. Erro humano ou ato divino, pouco importa. Eram dois "Wagners" a menos no mundo. No Ceará, Fagner. Em Alagoas, Wanger, que, por obra do acaso, hoje trabalha lá pelas bandas de Fortaleza.

 


Fagner, conheço de longe, pelas ondas do rádio e pelas telas da TV. Foi uma das vozes que ecoaram do Nordeste para o Brasil, junto com Alceu Valença, Belchior, Ednardo, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, entre outros. Cada um, à sua maneira, misturou raízes regionais com elementos urbanos, mas Fagner escalou alguns degraus a mais: seu canto alto, às vezes esganiçado, dividiu opiniões. Mesmo assim, ninguém nega o talento que o levou a parcerias com figuras míticas como Chico Buarque, Elis Regina e Nara Leão.

 

Já Wanger, ou melhor, Gasolina – apelido que lhe caiu como um boné por causa da velocidade nos campinhos de futebol –, conheço de perto. No final dos anos 70, trabalhávamos na mesma empresa em Alagoas e fazíamos de conta que jogávamos. Enquanto eu, centroavante, esperava cruzamentos na área adversária, ele, ligeiro feito boato, corria como um Fórmula 1 pela beirada do campo, quando boa parte da turma engasgava o motor no álcool. Com trocadilhos.  

 

Anos depois, ele foi para o Rio, eu para Brasília, e só nos reencontramos em 1990, na Bahia. Casados e com filhos, dividíamos mais do que memórias: nossa pobreza era quase um patrimônio. Nossas “namoradas” criaram uma amizade que dispensava formalidades, e entre confidências, gargalhadas e lágrimas, atravessaram bons e maus bocados.

 

Mas a estrela de nossos encontros em família era sempre Wanger, com sua simpatia única. Churrasco no quintal? Improvisava uma churrasqueira com quatro paralelepípedos e uma grelha enferrujada, torta. A trilha sonora? Dois CDs: Fagner e Sinatra. “Nacional ou internacional?”, ele perguntava, se acabando de rir. Quem escolhia sabia que ouviria a mesma música até o sol pedir arrego em Vilas do Atlântico, nos arredores de Salvador.

 

Foi num domingo como outro que a molecagem me pegou de jeito. Voltávamos da praia, eu e meus dois filhos (de 13 e 10 anos), cansados de tanto mergulho. Gasolina e os seus ficaram na barraca Odoyá Iemanjá. Com o corpo ainda anestesiado pelas cervejas do dia, tive uma ideia estúpida: tocar a campainha de uma mansão e sair correndo. Sem avisar os meninos, apertei o botão e disparei feito um doido ou um dos capitães de areia da obra de Jorge Amado.

 

No auge da traquinagem, meu pé encontrou uma pedra saliente. Foi um encontro desastroso: a danada nem se mexeu e meu dedão quase foi amputado. Sangrando e mancando, cheguei ao carro, onde minha mulher e nossos filhos me olhavam com aquele julgamento mudo que dispensa palavras: "Isso é papel de pai?", devem ter pensado.

 

Na segunda-feira, lá estava eu, de paletó e gravata, um pé no sapato, outro numa sandália. Liturgia do cargo ou palhaçada fashion, cada um que tirasse suas conclusões. Na reunião matinal, tentei manter a compostura e convencer os colegas de que o curativo era herança de uma pelada no sábado. Wanger, na maior cara dura, ainda ofereceu um par de chuteiras para a próxima. O sorriso apertava os olhos e fazia escorrer óleo de peroba pelos cantos do bocão.

 

Dias depois, a ferida cicatrizou, e o episódio caiu no esquecimento. Mas bastou um jantar recente em Maceió, regado a pão, vinho e risadas, para espreguiçar a criança que cochila dentro de nós. E lá estava, esperta e saltitante, pronta para novas travessuras.

 


No fundo, é isso que nos salva: rir dos tropeços e relembrar velhas histórias com quem compartilha o peso – e a leveza – de nossos caminhos. O acaso pode até pregar peças, sim, mas são as amizades que nos ajudam a transformar pedras em degraus. Viver também é equilibrar-se entre gafes de cartório, churrasqueiras improvisadas e estrepolias inesquecíveis.

O silêncio das tartarugas

O medo da insignificância social tem um papel decisivo na vida do ser humano. Na metade dos anos 1980, eu já acumulava mais de uma década de...