Estou há três semanas sob o céu esbranquiçado e sem graça de São Paulo. Durante a caminhada matinal, vi, não uma, mas duas vezes, um gari de uniforme cenoura encostado numa esquina da Rua Domingos de Morais, na Vila Mariana, segurando um copo de café. Lá estava ele, do lado de fora, como se o meio-fio fosse seu lugar natural no mundo.
Na primeira vez, desconfiei, mas fiquei calado. Na segunda, decidi me aproximar. Batizei-o de Jorge, nome de guerreiro, e minha mente viajou à Zona da Mata alagoana em que morei no final dos anos 1960, onde outro Jorge – não o poeta de “Essa Negra Fulô” e “O Acendedor de Lampiões” –, parecido e tão invisível quanto ele, sobreviveu por alguns anos.
Lá em União dos Palmares (AL) não havia água encanada. O Jorge de lá, maneta desde menino, mutilado na colheita de cana, vendia água de cacimba para beber e outra, retirada do Rio Mundaú, para os demais usos. Das quatro às cinco da manhã, dia sim, dia não, ele bombeava água para a caixa de distribuição sobre a laje de nossa casa. E, sempre que o barulho era mais forte, ele nos tranquilizava: “Né ninguém não, sou eu...” Hoje entendo o que ele queria dizer.
Perguntei ao Jorge daqui se ele estava na calçada por escolha, curtindo o seu café enquanto assistia aos passantes apressados tentando aquecer alma e corpo nos 15 graus matinais, ou se o balconista lhe pedira para tomá-lo do lado de fora por algum motivo. Ele, com um olhar conformado, quis me enganar com a dura poesia concreta daquela esquina:
– Tinha tanta gente lá dentro...
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Ilustração: ChatGPT |
Cidade grande é assim. Ela não manda recados, não avisa quando é hora de você deixar de ser alguém e passar a ser ninguém. São Paulo te engole sem mastigar. E ali, entre a esquina pichada, a lixeira e o meio-fio, Jorge parece mais um pedaço da paisagem, como o poste e a sarjeta, invisível para quem passa e não quer ver. Não é só o clima que é frio por aqui.
Eu carregava uma sacola com algumas roupas que ia doar à Paróquia de Nossa Senhora da Saúde. Decidi dar outro destino: no banheiro da estação Santa Cruz do metrô, Jorge vestiu parte delas, lavou o rosto, deu uma ajeitada no cabelo. Voltaríamos ao mesmo local para uma refeição decente – suco de laranja, pão na chapa, ovos mexidos e café com leite. Ele aceitou com silenciosa gratidão.
Jorge agora de calça de sarja, camisa polo e agasalho, foi recebido com simpatia pelo mesmo balconista que, meia hora antes, o pediu para se servir do lado de fora. Vai ver que nem o reconheceu. É curioso como uma troca de roupa muda a percepção das pessoas, não é? O balconista, que antes nem o notou, agora o cumprimentava com um sorriso e até puxou conversa sobre as eleições para prefeito. Perguntou o que achava de um abaixo-assinado sugerindo três candidatos no segundo turno, já que a diferença entre eles fora de menos de 1% dos votos. Jorge, desconcertante, desarmou o balconista:
– E se o terceiro colocado fosse um dos dois primeiros ele toparia?
O balconista calou-se. Mas a cidade, essa não cala nunca. Continua rugindo com seu trânsito doido, suas sirenes e seus prédios apontando para céu branco, enquanto reservam elevadores de serviço aos invisíveis. Para os privilegiados, sempre haverá quem não passa de “carga”. E o que me assombra não é essa divisão, mas a passividade com que aceitamos ser apenas plateia nesse espetáculo cujo final se imagina qual será. Ainda assim, fingimos surpresa quando as cortinas caem e as luzes se apagam.
Otto Lara Resende, em sua famosa crônica “O monstro da indiferença”, que já decorei de tanto reler, acertou em cheio. Ela narrou a história de um homem que, por 32 anos, cruzava todos os dias com o mesmo porteiro. Dava-lhe um “bom dia” automático, pegava a correspondência, um ou outro recado. Até que, um dia, o porteiro cometeu a descortesia de morrer. Só então o homem percebeu que nunca soube seu nome, nunca olhou na sua cara, nunca quis saber se ele melhorou da tosse da semana anterior. O porteiro precisou morrer para ser notado.
E assim seguimos. Elevadores de serviço, café no meio-fio (longe dos clientes habituais, limpos e perfumados – se bem que caráter ainda não tem cheiro!). Garis, faxineiras, porteiros e zeladores invisíveis. Não são os monstros que nos assustam, mas nós mesmos, quando o espelho nos revela a deformidade que criamos ao banalizar a indiferença.
Esta é uma história parcialmente fictícia, porém absolutamente verdadeira, pois refletindo sobre a brutalidade silenciosa da exclusão, já não me lembro sobre o que é uma coisa ou outra.