quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Café de ninguém

Estou há três semanas sob o céu esbranquiçado e sem graça de São Paulo. Durante a caminhada matinal, vi, não uma, mas duas vezes, um gari de uniforme cenoura encostado numa esquina da Rua Domingos de Morais, na Vila Mariana, segurando um copo de café. Lá estava ele, do lado de fora, como se o meio-fio fosse seu lugar natural no mundo. 

Na primeira vez, desconfiei, mas fiquei calado. Na segunda, decidi me aproximar. Batizei-o de Jorge, nome de guerreiro, e minha mente viajou à Zona da Mata alagoana em que morei no final dos anos 1960, onde outro Jorge – não o poeta de “Essa Negra Fulô” e “O Acendedor de Lampiões” –, parecido e tão invisível quanto ele, sobreviveu por alguns anos. 

 

Lá em União dos Palmares (AL) não havia água encanada. O Jorge de lá, maneta desde menino, mutilado na colheita de cana, vendia água de cacimba para beber e outra, retirada do Rio Mundaú, para os demais usos. Das quatro às cinco da manhã, dia sim, dia não, ele bombeava água para a caixa de distribuição sobre a laje de nossa casa. E, sempre que o barulho era mais forte, ele nos tranquilizava: “Né ninguém não, sou eu...” Hoje entendo o que ele queria dizer.  

 

Perguntei ao Jorge daqui se ele estava na calçada por escolha, curtindo o seu café enquanto assistia aos passantes apressados tentando aquecer alma e corpo nos 15 graus matinais, ou se o balconista lhe pedira para tomá-lo do lado de fora por algum motivo. Ele, com um olhar conformado, quis me enganar com a dura poesia concreta daquela esquina:
– Tinha tanta gente lá dentro...



Ilustração: ChatGPT

 

Cidade grande é assim. Ela não manda recados, não avisa quando é hora de você deixar de ser alguém e passar a ser ninguém. São Paulo te engole sem mastigar. E ali, entre a esquina pichada, a lixeira e o meio-fio, Jorge parece mais um pedaço da paisagem, como o poste e a sarjeta, invisível para quem passa e não quer ver. Não é só o clima que é frio por aqui.

 

Eu carregava uma sacola com algumas roupas que ia doar à Paróquia de Nossa Senhora da Saúde. Decidi dar outro destino: no banheiro da estação Santa Cruz do metrô, Jorge vestiu parte delas, lavou o rosto, deu uma ajeitada no cabelo. Voltaríamos ao mesmo local para uma refeição decente – suco de laranja, pão na chapa, ovos mexidos e café com leite. Ele aceitou com silenciosa gratidão.

 

Jorge agora de calça de sarja, camisa polo e agasalho, foi recebido com simpatia pelo mesmo balconista que, meia hora antes, o pediu para se servir do lado de fora. Vai ver que nem o reconheceu. É curioso como uma troca de roupa muda a percepção das pessoas, não é? O balconista, que antes nem o notou, agora o cumprimentava com um sorriso e até puxou conversa sobre as eleições para prefeito. Perguntou o que achava de um abaixo-assinado sugerindo três candidatos no segundo turno, já que a diferença entre eles fora de menos de 1% dos votos. Jorge, desconcertante, desarmou o balconista: 

– E se o terceiro colocado fosse um dos dois primeiros ele toparia?

 

O balconista calou-se. Mas a cidade, essa não cala nunca. Continua rugindo com seu trânsito doido, suas sirenes e seus prédios apontando para céu branco, enquanto reservam elevadores de serviço aos invisíveis. Para os privilegiados, sempre haverá quem não passa de “carga”. E o que me assombra não é essa divisão, mas a passividade com que aceitamos ser apenas plateia nesse espetáculo cujo final se imagina qual será. Ainda assim, fingimos surpresa quando as cortinas caem e as luzes se apagam.

 

Otto Lara Resende, em sua famosa crônica “O monstro da indiferença”, que já decorei de tanto reler, acertou em cheio. Ela narrou a história de um homem que, por 32 anos, cruzava todos os dias com o mesmo porteiro. Dava-lhe um “bom dia” automático, pegava a correspondência, um ou outro recado. Até que, um dia, o porteiro cometeu a descortesia de morrer. Só então o homem percebeu que nunca soube seu nome, nunca olhou na sua cara, nunca quis saber se ele melhorou da tosse da semana anterior. O porteiro precisou morrer para ser notado.

 

E assim seguimos. Elevadores de serviço, café no meio-fio (longe dos clientes habituais, limpos e perfumados – se bem que caráter ainda não tem cheiro!)Garis, faxineiras, porteiros e zeladores invisíveis. Não são os monstros que nos assustam, mas nós mesmos, quando o espelho nos revela a deformidade que criamos ao banalizar a indiferença.

 

Esta é uma história parcialmente fictícia, porém absolutamente verdadeira, pois refletindo sobre a brutalidade silenciosa da exclusão, já não me lembro sobre o que é uma coisa ou outra.

 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Jogos de poder

O eleitor que não foi às urnas no último domingo e não apresentar justificativa em até 60 dias vai ter que pagar à Justiça Eleitoral uma multa de R$ 3,51 (isto mesmo que você leu!). O que justificaria essa “promoção” para uma omissão tão séria na vida democrática do País? 


No Brasil, as siglas partidárias adoram confundir o eleitor. O nome? Pode ser qualquer um, menos o que de fato representam. Socialistas que são trabalhistas, trabalhistas que flertam com o social-democrata, social-democratas com alma liberal, liberais com traços autoritários, rentistas com jeito de rentistas mesmo. E, claro, progressistas que parecem conservadores, além de conservadores que têm um pezinho no reacionário. Um verdadeiro baile de máscaras que deixa o eleitor se perguntando se foi parar na festa errada. 


Os partidos? Viram coadjuvantes no grande palco eleitoral. E quem fica no centro das atenções? O candidato, é óbvio. O eleitor cada vez mais vota "na pessoa", não na ideologia. Escolher alguém pela autobiografia – ou ficha policial, em alguns casos – virou moda, como se o sujeito fosse uma ilha, alheio ao grande circo político.


Os políticos perceberam o truque: basta caprichar na embalagem. Nas campanhas, o partido é quase irrelevante. O que vende é o pretenso currículo. A desinformação, então, brota como erva daninha. Boatos se espalham com o vento, alimentando uma plateia que já não sabe distinguir entre o real e o imaginário das siglas. 

 

O nome pode não dizer nada, mas a retórica revela intenções. Claro, não é fácil, mas se o eleitor não fica atento, acaba como prato principal no banquete do marketing político – e nem notará que está engolindo desinformação, fria e sem tempero.

 

Foi nessa confusão de siglas que lembrei da minha primeira experiência política, igualmente desorganizada e cheia de "jogos de poder". Desde moleque, descobri que esse caminho não era pra mim. Meus irmãos podem confirmar: um dia, lá em 1966, fui eleito prefeito... da nossa rua. Verdade! Aconteceu em Patos, no Sertão da Paraíba, na época da disputa acirrada pra governador entre João Agripino (UDN) e Ruy Carneiro (MDB), acompanhada voto a voto pela Rádio Espinharas.


Ilustração: ChatGPT


A molecada andava solta no meio da rua, colecionando "santinhos" dos candidatos. Nessa agitação, surgiu a ideia de eleger um prefeito para a Rua Bossuet Wanderley. Sabe Deus pra fazer o quê, sem verbas públicas pra gastar nem novos impostos a arrecadar. Mas, na política, quem liga para o que vem depois da vitória?

 

Ninguém queria enfrentar Lindomar, o "Lindo", um moleque brigão e dentuço, que imitava o lutador Ted Boy Marino. Derrota garantida. Mas, sem disputa, que graça teria? Me colocaram na jogada, sabendo que a vitória seria quase impossível. Dos 20 eleitores, uns 15 juravam voto pro Lindo antes mesmo de começar.

  

Primeiro, fui até Zé Augusto, o mais velho e respeitado da turma. Éramos vizinhos. Ele recusou, pois não queria encrenca com Lindomar. Mas num cochicho, prometeu ajuda secreta. Bastou lembrá-lo do dia em que eu o vi insinuando saliências à cozinheira da casa dele, casada com o vigia noturno. 

 

Cleto e Flávio, dois amigos de Lindomar, também mereceram uma "conversa de pé-de-orelha". Flagrei os dois numa situação, digamos, delicada, e propus: votem em mim e fica tudo apenas entre nós, mas podem dizer que votaram nele. E teve Gilmar, que mudou de lado depois de levar uns sopapos do irmão de Lindomar, Elpídio. De olho no possível lucro eleitoral, seja qual fosse o desfecho da encrenca entre eles, cruzei os braços e não apartei a briga.

 

Eu poderia ter um belo futuro, não fosse o sonho desfeito a poder de zanga da principal autoridade eleitoral da época. Uma espécie de Cármen Lúcia sem papas na língua, como veremos adiante.

 

No grande dia, a surpresa: ganhei por um voto. Furioso, Lindomar pediu recontagem, mas já era tarde. Só faltou me dar uma cadeirada, ferindo o decoro da disputa. Se tivesse justiça eleitoral de rua, eu estaria respondendo por "lesão corporal política". Cantei vitória, mas não durou muito. Minha mãe apareceu na janela com um chinelo na mão:

– Venha já pra casa, cabra safado! Saia daí antes que eu conte pro seu pai no que você tá se metendo!

 

Como uma juíza implacável, ela me fez renunciar antes mesmo da posse. Um pouco mais tarde, nossa família mudaria para Alagoas. Trinta e cinco anos depois, quando voltei à Paraíba, descobri que boa parte dos “eleitores dentes-de-leite” daquele tempo tiveram um trágico destino, vítimas de brigas de gangues e da violência que tomou conta de suas vidas.


Sei lá! Os pais têm uma habilidade sobrenatural de cortar as asas dos filhos antes que eles subam ao palco errado. Pressentem quase tudo. Mas será que, se não fosse pela bronca da minha mãe, teria feito alguma diferença naquele destino cruel que aguardava meus amigos de rua? Ou já estávamos todos predestinados a sermos apenas peças de um grande jogo, sujeito a regras que nunca entenderíamos?





 


quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Prêmios luxuriosos

No frenético reality show que a vida moderna vem se tornando, confesso que não me surpreende nem um pouco descobrir que a popstar Katy Perry, aos 39 anos, encontrou uma maneira inusitada de transformar as tarefas domésticas do marido, Orlando Bloom, em algo digno de um Oscar... ou, quem sabe, de um Grammy. Durante uma entrevista ao podcast americano "Call Her Daddy", Katy revelou que, em troca de uma cozinha impecável e armários bem fechados, Orlando pode muito bem esperar por uma recompensa especial – o tipo de prêmio que nem todo o dinheiro de uma Ferrari vermelha poderia comprar.


O mundo dá suas voltas, e agora parece que lavar a louça pode valer mais que uma viagem ao espaço com Jeff Bezos. A praticidade absurda da vida moderna: pratos limpos, prêmios luxuriosos. Katy, em tom de brincadeira, explicou que não precisa do carrão esportivo, porque pode comprar à hora que quiser. Mas uma cozinha limpa? Bem, isso vale ouro! E o maridão que se prepare para ganhar uma caprichada sessão de sexo oral! Se a moda pega, a lava-louças vai acabar se tornando o novo objeto de desejo dos lares.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)
 


Katy e Orlando estão juntos desde 2016 e têm uma filha, Daisy, de 4 anos. A cantora voltou a brilhar no Rock in Rio 2024 na sexta-feira, 20 de setembro, e não é de hoje que ela imprime sua marca no Brasil, como fez em sua última turnê em 2018. Mas, deixando os palcos de lado, quem diria que uma das maiores estrelas do pop mundial trocaria o glamour pelo brilho de uma faxina bem-feita?

 

Claro, todos sabemos que nem todo mundo é fã da limpeza da casa. Mas, sem ela, o lar se transforma em um território minado, onde cada passo é um lembrete de que a bagunça saiu vitoriosa. Então, organizar-se não é apenas uma necessidade – para Katy, é um ato de amor digno de “prêmios” cinematográficos.

 

Enquanto Katy e Orlando encenam suas próprias dinâmicas de troca em grande estilo, no mundo real, onde as estrelas não brilham tanto, outros casais também negociam suas rotinas. Conheço um sujeito que entrou nessa dança das recompensas sensíveis, embora sem o glamour de popstars. Em troca de sexo com maior assiduidade, ele topou ajudar sua esposa nos trabalhos universitários voltados à tão sonhada graduação, além de assumir boa parte das tarefas de casa - arrumava as camas, lavava a louça, mantinha o fogão limpo, varria e retirava o lixo. Em um deslize freudiano, no boteco, até se saiu com essa: “Quando iremos receber nosso diploma, querida?”

 

Pena que a esposa, apesar do esforço extremo, não conseguiu se encaixar no mercado de trabalho como pretendia, voltando à rotina doméstica de anos e anos. No Brasil, aliás, mesmo quando trabalham fora, as mulheres dedicam até 25 horas por semana a afazeres domésticos e cuidados, enquanto os homens dedicam cerca de 11 horas, segundo um estudo da Fundação Getúlio Vargas divulgado em outubro do ano passado.

 

Nos países com maior igualdade de gênero, essa disparidade diminui, mas ainda existe – na Noruega e na Suécia, elas completam, respectivamente, 42 e 50 minutos a mais de trabalho não remunerado por dia do que eles. No outro extremo, no Egito, as mulheres têm 5,4 horas de trabalho não remunerado diariamente, enquanto os homens têm apenas 35 minutos.

 

Independentemente da geografia, as mulheres tendem a ser responsáveis por essas tarefas diárias, enquanto os homens muitas vezes cuidam da construção e dos reparos da casa ou dos cuidados com jardim ou quintal  – tarefas normalmente realizadas com menos frequência. 

Voltando ao caso de Katy Perry e Orlando Bloom, posso imaginar o que ela teria a oferecer ao maridão em troca de desentupir uma pia repleta de pratos engordurados ou enfrentar um vaso sanitário daqueles que desafiam até o mais valente dos encanadores. Talvez a melhor saída seja criar uma tabela de conversão, quem sabe com uma trilha sonora épica e um contrato com uma produtora de Hollywood, porque, convenhamos, em tempos de relações nada ortodoxas, tudo vale a pena, especialmente quando a alma é pequena.

 

Agora, deixando de lado a ironia e voltando à realidade, essas trocas cotidianas, embora possam parecer inofensivas, perpetuam um ciclo de desigualdade que molda silenciosamente as relações de poder nas tarefas domésticas. 


No fim das contas, o bem-estar de uma cozinha impecável pode esconder a escuridão de padrões que já deveriam estar ultrapassados, mas que ainda ditam as dinâmicas de gênero em muitos lares. E, se os envolvidos não abrirem os olhos, podem acabar trocando mais do que deviam por bem menos do que merecem.





 

 

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

O Sol sai de cena

Desde o final dos anos 1960, a canção “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, ecoa como um tributo à liberdade em dias de turbulência. "O Sol nas bancas de revistas me enche de alegria e preguiça", cantava-se. Quem diria que, um dia, o astro-rei se esconderia atrás de nuvens digitais, apagando parte das experiências que moldaram nossa cultura.


Fotografia: Dedé Dwight


Naquela época, as bancas eram templos vibrantes do saber popular. Folhear uma revista ou jornal se misturava à emoção de ouvir Roberto Carlos, especialmente no Natal. Essas experiências singelas e significativas forjaram a identidade de uma geração. Mas, como o próprio Roberto cantava, “esses detalhes vão sumir na longa estrada do tempo que transforma todo o amor em quase nada”.

 

Hoje, as bancas sobreviventes, que já foram farmácias da alma, são frequentadas por poucos fãs. A internet, devoradora voraz de papel e tinta, não só desbotou as cores dos quadrinhos, como nos roubou o prazer de cheirar e folhear páginas recém-impressas. A Editora Abril, que um dia foi gigante, fechou suas tiragens como quem apaga as luzes de um salão vazio. 

 

Duas revistas simbólicas que povoaram a nossa imaginação sucumbiram à força dos ventos digitais. “Placar”, que já foi semanal, reduziu-se a edições temáticas sem o mesmo apelo. “Playboy”, cuja versão brasileira começou em 1975, encerrou suas atividades após 40 anos, deixando órfãos desamparados. Até “O Pasquim”, que desafiava o regime militar com irreverência e crítica afiada, hoje não passa de uma memória distante de um jornalismo que já foi ágil e pulsante.

 

A transformação, porém, não foi apenas física. Onde antes vibravam de cores de gibis até fotonovelas, agora se vendem quinquilharias a granel, de batatinhas a acessórios para celulares. O cheiro de papel e tinta deu lugar ao aroma de frituras. O que um dia alimentou nossa imaginação, agora luta para sobreviver num cenário de plástico e fumaça. Ainda assim, há algo de resiliente no horizonte: um ou outro livro se destaca, resistindo, timidamente, ao apagamento cultural.

 

Eu, que já fui forçado a abdicar de prazeres que me conectavam a tempos saborosos – caldo de cana, chocolate, chope, doce de leite e rabanada –, aprendi que a verdadeira liberdade consiste em poder saborear lembranças e não só alimentos. E, ironicamente, até hoje ninguém me exigiu moderação no consumo de hortaliças, como se mastigar cebola crua e coentro não fosse uma insuportável penitência.

 

Agora, estou prestes a perder mais um prazer: devorar essas memórias em pleno Natal, ao som de Roberto Carlos. A TV Globo, que por décadas renovou o contrato do “astro-rei”, considera substituí-lo, como quem troca um disco arranhado por uma playlist de sucessos descartáveis. Fala-se que Fábio Jr. é o nome escolhido. Pode ser que ele tenha carisma, mas, para mim, não é a mesma coisa. A nostalgia não se apaga tão facilmente, mas talvez precise conviver com essas mudanças.

 

No mês passado, um amigo me mandou um recorte de vídeo de 1975, onde Dorival Caymmi, Roberto Carlos e Silvio Caldas atracam um barquinho numa praia e conversam animadamente. Roberto então pega o violão e, junto com o “Caboclinho”, cantam “Ternura Antiga”, de Dolores Duran e J. Ribamar. Não resisti e comentei sobre o privilégio de termos visto aquilo na TV nos melhores anos de nossas vidas. Mesmo que agora as memórias se revelem em pixels, elas ainda podem nos tocar intensamente.

 

O especial de Roberto Carlos, celebrando 50 anos de parceria com a Globo, será exibido ao vivo em dezembro, no Maracanã. E o que acontecerá depois? O tempo das bancas, das revistas e até dos shows de Roberto está se apagando lentamente, substituído por algo mais efêmero, menos tangível. Tudo bem, um show de Fábio Jr. pode não ter a mesma aura de antigamente, mas é uma nova página sendo virada.

 

Que tempos são esses, onde já não podemos nos fartar de lembranças, cheiros e sons que um dia foram o prato cheio de nossa mais genuína felicidade? Já nos roubaram o gosto das bancas, de tantas comidas e bebidas, e agora nos arrancam os últimos acordes de um Natal que, sem a voz do Rei, jamais será o mesmo. No entanto, quem sabe não descobrimos novos prazeres nesses tempos digitais? Talvez até ouçamos, em alguma playlist moderna, a voz de Roberto nos lembrando que “as flores do jardim da nossa casa morreram todas de saudades de você...”

 

Vivemos sob a sombra de um tempo que não volta mais, onde as memórias se esvaem como o cheiro das páginas recém-impressas. O Sol que antes iluminava as bancas e nossas vidas agora se esconde atrás de telas frias.

 

Só nos resta sair por aí caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento, como cantava Caetano, acreditando que por trás das nuvens digitais o Sol ainda brilha. É o que temos pro jantar.



quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Lusco-fusco

De frente pro mar no lusco-fusco do fim da tarde, um advogado dos bons por estas bandas ouvia Toquinho cantando "Testamento" como um lembrete implacável: a vida acontece enquanto acumulamos o que não podemos levar. “Você, que só ganha pra juntar, o que é que há? Diz pra mim, o que é que há?”. 

O refrão já se tornara um mantra irritante, e ele se questionava se realmente aquelas palavras faziam sentido, não só para os outros, mas para si. Resolveu então caminhar na areia até que a brisa dissolvesse a bruma dos pensamentos.


Perto dali, ancorando um barco, encontrou um velhote de barba e cabelos longos, amarrados, com um sorriso que mesclava maturidade e molecagem, que o convidou a se sentar na areia e, sem rodeios, disparou na lata: 

– Você já não tem tanto tempo pela frente, né? Quando sua hora chegar, nada do que juntou importa. A vida não anda de lado feito siri. Aproveite enquanto pode, gaste o que precisa ser gasto. E quando virar cinzas, tanto faz se te elogiam ou te esquecem. A maior decepção de quem deixa o baile é não ver a cara de quem segue na dança.


Fotografia: Dedé Dwight

 

Ele sabia, mas era doloroso admitir. O velhote, percebendo a hesitação, seguiu com sua ladainha, cortante como uma peixeira: 

– Seus filhos? Nem esquente. Têm a própria vida, vão se virar. Se for pra se preocupar, que seja com os netos. Eles sim, carregam um samburá de interrogações e precisam de atenção. E, se alguém da família estiver de olho no que você possui, paciência. Acontece com os melhores sobrenomes.

 

Ele tentou rir, desajeitado. O velhote piscou como quem já viu muitos cardumes passando e estava ali só vendo o fluxo. E prosseguiu: 

– Outra coisa, não troque saúde por dinheiro. Com mais de 70 nas costas, você já deve ter notado que só precisa mesmo de um cantinho de 3x4 metros pra dormir, certo?

 

Aquilo bateu como um veredicto inapelável. Era algo que ele sabia, mas evitava enfrentar. E o velhote não parecia disposto a deixá-lo escapar tão fácil: 

– Pare de se comparar com os outros. Medir sua vida pelo sucesso dos filhos ou pela fama dos outros só vai te encher o saco. O que importa é criar alguns minutos felizes todo dia. O resto é espuma.

 

Cada sentença martelava na cabeça do ouvinte. Ele engolia tudo, sem saber exatamente o que responder. O tagarela, percebendo o silêncio, sorriu com a confiança de quem já fisgara o que queria: 

– Valorize o que tá ao seu redor. Família, amigos... São eles que te provam que a vida continua. Quem perde o teto, ganha a lua e as estrelas. Mas, fique esperto com os amigos. Só Roberto Carlos acreditou que teria um milhão deles – e isso muito antes das redes sociais. Se contente com meia dúzia. Amigos são escolhidos; não impostos, como os familiares.

 

Sem muito esforço, o velhote se levantou, preparando o golpe de misericórdia: 

– Nunca busque a perfeição, nem nas pessoas, nem na vida! Se não encontrar quem te valorize, é melhor ficar sozinho. Solidão não é fraqueza, é coragem. Coragem de encarar a sua própria essência.

 

E o advogado, que até ali só ouvira, quis instalar o contraditório com um “salvo melhor juízo” e uma mentira deslavada: 

– Quem lhe disse que não sigo esses “ditames”? E invocou Paulinho da Viola, mas as palavras soaram ocas como uma defesa que nem ele acreditava: "Não sou eu quem me navega, quem me navega é o mar."

 

O velhote então balançou a cabeça, rindo, e começou a caminhar em direção ao barco. Mas, em vez de subir a bordo, mergulhou e nadou lentamente até desaparecer na escuridão. Não, ele não se afogou, pelo menos nada foi visto nos telejornais nem nas redes sociais nas horas seguintes.

 

Enquanto sumia nas águas, o advogado se perguntava se o velhote era real ou apenas uma projeção de seus temores. Como o mar, a vida também nos afoga sem aviso. Tudo o que podemos fazer é tentar pescar algumas lições pelo caminho.

 

Depois de um prato de sopa, agora escutando "Notícia de Jornal", de Chico Buarque, o fecho da canção não lhe saía da cabeça: “Ninguém notou, ninguém morou na dor que era o seu mal. A dor da gente não sai no jornal.”

 

E de tanto ouvir falar de dores invisíveis, ele percebe que a maior de todas é viver sem notar que o tempo escorre entre os dedos. Que a dor da gente não sai nas redes sociais. Que nem sempre tem alguém na praia pra nos ensinar como ler a tábua das marés. 

 

O certo é que, na última audiência, prestes a se tornar coisa julgada, não haverá data venia, apelação ou embargos infringentes que consigam procrastinar a sentença no lusco-fusco da vida de cada um.

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Abacaxi de ponta-cabeça

Quem me conta a novidade é meu velho e querido amigo Aleixo, natural de Batatais (SP). Diz ele que, em vez de usarem os convencionais aplicativos de namoro, algumas pessoas estão indo aos supermercados de Madri, na Espanha, em busca de parceiros. O que começou como uma brincadeira viralizou nas redes sociais e virou febre no país.


A regra para participar é bem simples: circular numa famosa rede de supermercados entre 19h e 20h. Dizem que esse é o horário perfeito para paquerar e, quem sabe, sair de lá com um novo contato. Para os iniciados, o sinal é segurar uma chave na mão e colocar um abacaxi de ponta-cabeça no carrinho de compras. Daí, é só seguir pelos corredores com um olho nas prateleiras e o outro nas criaturas. Se rolar aquele olhar, é só encostar o carrinho no da outra pessoa e partir para o abraço, sem risco de ser acusada de assédio sexual. 

 

Ilustração: Uilson Morais (Umor)

De início pensei que eu seria completamente inepto para a prática. Só depois percebi que apenas o abacaxi fica de ponta-cabeça. Encontrar uma cara-metade sempre foi complicado, mas hoje em dia parece ser ainda mais. Não apenas pelo volume de opções, mas pela enorme gama de expectativas. Você pode viver um relacionamento monogâmico, poliamoroso ou algo ainda mais criativo. Pode morar junto, separado ou até dividir a mesma casa sem se ver muito. Encontrar alguém que se encaixe no que se procura é quase como tentar combinar ingredientes de uma receita que ninguém sabe que gosto terá.

 

Além disso, as exigências são bem mais altas do que eram. Antes, bastava alguém para proteger os filhos ou cuidar da loja ou da roça. Com o tempo, a pessoa se tornava companhia para dividir dores e prazeres. Hoje, espera-se que a outra seja intelectualmente parecida, excelente no trabalho, ótima mãe (ou pai), parceira sexual ativa e, de preferência, infatigável. 

 

Pois não é que meu amigo Aleixo, que saiu de Batatais nos anos 1980 e morou boa temporada no Nordeste, me pergunta como seria se os nordestinos aderissem à moda espanhola. Pelo menos quanto à fruta escolhida, imagino, mas sem qualquer rigor científico, que optariam por manga-rosa, melão maduro, sapoti, juá ou umbu-cajá, invocando o espírito de "Morena Tropicana", de Alceu Valença.

 

Agora, se tem uma coisa que andam errando feio por aqui são as estratégias de encontro via aplicativos. Não que eu entenda muito do assunto, mas já li a respeito. O primeiro pecado é não ter clareza sobre o tipo de relacionamento que se busca. Se você quer a longo prazo e a outra figura quer algo ligeiro, a equação já começa torta. E quando as expectativas não batem, não existe risco: vai dar merda.

 

Outro vacilo está nas fotos. As criaturas interessadas não colocam imagens recentes e, quando se encontram ao vivo, mal se parecem com o que foi "comprado". Nem acho que estejam enganando de propósito, é mais mecanismo de defesa do ego. Afinal, todos nós gostamos de acreditar que ainda somos a versão de nós mesmos de dez anos atrás. Se bem que, muitas vezes, isso não faz tanta diferença.

 

Os especialistas recomendam de três a cinco fotos no perfil, no mínimo. Uma com um sorriso autêntico, outra de corpo inteiro (vestido, hein?!), e algumas que mostrem você fazendo algo que realmente ama. Tudo publicável, claro! Ah, e não esqueça das “beige flags” – aquelas peculiaridades que podem parecer excêntricas, mas são parte de quem você é. Soube de uma moça que colocou no perfil que só se depila uma vez a cada quatro meses. Pode ser que espante alguns, mas vai atrair outros. Espera-se que a periodicidade de outras providências seja maior.

 

Mas quem sou eu pra falar desses aplicativos de namoro, meu caro Aleixo! De Batatais a Maceió, passando por Salvador e Brasília, muita coisa deve ter mudado pra você. Lembra como era a paquera antigamente? A mesma praça, o mesmo banco, as mesmas flores e o mesmo jardim, a bandinha no coreto entoando a velha canção de sempre, os músicos tão decrépitos que, certa vez, você me contou que um deles infartou e só perceberam três dias depois, quando ele já soprava fagote no céu junto com os anjinhos tocando harpa.

 

Você também me falou dos rapazes que caminhavam pela calçada da praça da matriz no sentido anti-horário, enquanto as moças circulavam no sentido contrário, trocando olhares tímidos, em frente ao Cine Madalena. De repente, uma delas, linda e perfumada, puxa conversa com um aprendiz de bancário magricela, feio de amargar: 

– Nossa, você é daqui? 

– Sou, sim, de Batatais... 

– Não, moço, eu quero saber se você é do planeta Terra.

 

E assim começou um romance que já dura quase meio século. Porque, no fim das contas, seja no supermercado de Madri ou na pracinha de Batatais, a dúvida é a mesma: “Você é daqui... Ou é mais um abacaxi de ponta-cabeça no planeta Terra?”.








 

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Tudo tem limite!

O ex-presidente José Sarney de Araújo Costa, batizado há 94 anos como José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, não era o único Ribamar do Maranhão. O nome é tão comum no Estado quanto José ou João, e o santo que inspirou seu nome original é um dos mais venerados pelos maranhenses. A cidade de São José de Ribamar, a cerca de 32 km da capital, atrai cerca de 50 mil romeiros para sua festa anual, que dura 13 dias em setembro.


Existem três versões para a origem do nome da cidade. A mais simples diz que Ribamar era um pescador que encontrou no mar uma imagem de madeira de São José, similar ao que aconteceu em 1717 em Guaratinguetá (SP) com Nossa Senhora Aparecida. Curioso que ninguém se pergunte quem jogou a imagem na água. O que teria motivado essa pessoa? Uma derrota do seu time? A falta de cerveja gelada? Nunca saberemos!

Outra versão diz que tentaram construir uma igreja voltada para a cidadezinha, mas a construção sempre desabava. Até que alguém sonhou que São José queria ficar virado para o oceano para proteger os pescadores, daí o nome Ribamar, uma corruptela de "arriba do mar".

A terceira versão menciona um capitão português salvo de um naufrágio graças à fé em São José. Os índios contribuíram com a denominação São José de Ari-bamar, que ao longo do tempo se transformou em Ribamar.

Escolha a versão que você preferir. Eu me daria por satisfeito se entendesse a mera troca de Ribamar por Sarney. De qualquer forma, homenagens ao protetor da cidade não faltam. Em uma pequena elevação próxima ao mar, há uma enorme estátua de São José de mãos dadas com o Menino Jesus.

Na frente da igreja principal, estátuas retratando cenas da vida do pai adotivo do Menino Jesus lembram as obras de Aleijadinho em Congonhas do Campo (MG). Não pela magnitude, mas pela disposição: duas fileiras simétricas de estátuas abrem uma passarela para os fiéis se dirigirem ao altar ou à arquibancada do outro lado da praça.

Apesar de tanta devoção, é no Carnaval fora de época que a cidade enfrenta uma superlotação e falta de itens básicos, de cadarço de tênis a sal de cozinha. Celebrado no primeiro fim de semana após a Quarta-Feira de Cinzas, o evento atrai cerca de 100 mil pessoas para ver os tradicionais blocos de São Luís. Talvez o fato de a cidade atrair mais foliões do que romeiros explique por que o santo teria tentado se afogar nas águas salgadas da costa maranhense.

Não é só em dias de festa que os moradores da capital migram para São José de Ribamar. É tradição ir de São Luís a pé ou de bicicleta para assistir à missa aos domingos. Após a obrigação, vem a diversão: as praias ficam lotadas de fiéis que, entre um banho de mar e outro, saboreiam cervejas geladas e devoram o prato típico local, o peixe-pedra.

Surfando na internet, descobri que a Justiça do Maranhão condenou um morador da cidade a 3 anos e 3 meses de prisão por usar uma tornozeleira eletrônica no lugar de outro réu. Em troca, ele recebia uma mesada de R$ 3 mil para não revelar a origem do dinheiro.

José de Ribamar foi preso em maio do ano passado, em sua casa no bairro de Itaguará, porque se identificou com um documento falso em nome de Ribamar José, investigado por tráfico de drogas. E o verdadeiro criminoso está foragido. Não foi localizado para responder ao processo junto com ele.

Em depoimento, José de Ribamar contou que conheceu Ribamar José por meio de um amigo, por coincidência chamado Ribamar dos Santos. Ele aceitou a proposta de Ribamar José para quitar uma dívida com um agiota e receber uma mesada fixa, pois estava desempregado e vivendo de "bicos".

Alerta: se você se confundiu um pouco com a profusão de josés e ribamares (um deles pertencente aos céus, que não tinha entrado na história), sugiro reler os parágrafos acima. Isso será importante ao final!

Ao tomar conhecimento desse caso, tive um pesadelo medonho. Com a volta dos ex-jogadores vascaínos Philippe Coutinho, Alex Teixeira e Souza, sonhei que o Vasco também teria trazido de volta o inesquecível Lucas Ribamar, conhecido como Ribamito ou Ribagol, autor da façanha de oito gols em 64 jogos entre 2019 e 2020.

Felizmente, não é verdade. Assim como é pura imaginação a história do Ribamar que foi preso por usar a tornozeleira de outro, o que revelaria um sistema de justiça vulnerável e a precariedade da vida de muitos brasileiros. 

 

Alguém aceitar uma proposta criminosa para quitar dívidas e sobreviver é um sinal de marginalização social e econômica que definitivamente não existe entre nós. A desigualdade e a injustiça por aqui não são tão gritantes assim. Tudo tem limite, ora bolas! 



 

O peso do sim e o doce da culpa

Ilustração: Uilson Morais (Umor) Durante anos, os ovos carregaram o rótulo de vilões das artérias. Um só — dos grandes, de gema graúda — vin...