quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Arte ou macacada?

Na última quinta-feira, enquanto tentava acompanhar uma aula por videoconferência, recebi de meu amigo, o espirituoso jornalista e escritor Francicarlos Diniz, uma mensagem enigmática:

– Vai render pano pra manga. Ou melhor, banana...
– A preço de banana? – devolvi, brincando, mesmo sem entender aonde ele queria chegar.
– De bananada... – ele retrucou.
– Aí pode embananar tudo... – insisti, esperando o troco.
– E ainda dizem que nós é que somos a República das Bananas...

 

Achei que ele falava da coleção Diário de um Banana, que acaba de chegar ao 19º livro, Baita Lambança. A série, escrita por Jeff Kinney, já vendeu mais de 290 milhões de exemplares em 70 idiomas. Mas não: Francicarlos se referia a outra “banana” que dominava as manchetes.

 

Uma obra de arte – com o perdão da palavra! – composta por uma simples banana presa à parede com fita adesiva foi vendida por absurdos US$ 6,2 milhões (cerca de R$ 35 milhões). O comprador foi Justin Sun, magnata das criptomoedas. A peça, intitulada Comediante, do italiano Maurizio Cattelan, reacende a velha questão: afinal, o que é arte?


A banana, que já havia causado furor na Art Basel de Miami em 2019, repetiu o feito na Sotheby’s de Nova York, onde, após lances frenéticos, superou a estimativa inicial de US$ 1,5 milhão. Justin Sun, além de pagar em criptomoeda, ainda herdou a obrigação de substituir a banana quando ela apodrecer. Para ele, porém, não era só uma fruta pendurada: “É um fenômeno cultural que une arte, memes e a comunidade cripto”, declarou, como quem descascava uma verdade universal.

 

A ironia não passou despercebida. Especialistas compararam a peça a Autorretrato, de Banksy, e à provocação histórica de Marcel Duchamp, com sua Fonte – o icônico urinol de 1917. Foi aí que Francicarlos, implacável, disparou mais uma: "Esse Duchamp, que de banana não tinha nada, começou com essa macacada.


Ilustração: mosaico de obras de Catellan, Banksy e Duchamp


De fato, Duchamp inaugurou o ready-made, transformando objetos comuns em arte e confundindo os limites do que pode ser exposto. Décadas depois, Andy Warhol imortalizaria a banana como ícone da arte pop, estampada no álbum inaugural da banda The Velvet Underground. E agora, Cattelan estica ainda mais essa corda, pendurando uma obra absurdamente simples e milionária.


Enquanto pensava nisso, lembrei de Bienal, a canção de Zeca Baleiro que satiriza o mundo da arte contemporânea com versos como “fios de pentelho de um velho armênio” e “asa de barata torta”. É o retrato ácido de um elitismo artístico que aliena o público comum – aquele que, como a mãe do narrador da música, exclama: "Meu filho, isso é mais estranho que o cu da gia e muito mais feio que um hipopótamo insone". Noutras palavras: é arte ou macacada?

 

Recordei também um episódio com meu amigo Anchieta, cearense de língua afiada, numa exposição no CCBB, em Brasília. Ele ficou cara a cara com cilindros metálicos pintados de vermelho que ostentavam uma etiqueta de obra de arte. Olhou para mim e cochichou: "Tá parecendo o tonel enferrujado em que a gente guardava água lá no quintal de casa, quando chovia no Ceará".

 

Voltei à aula, mas Francicarlos, certeiro, lançou uma última farpa antes de desaparecer: "Agora preste atenção à aula que o bedel tá de olho em você!".


Acatei o conselho, mas entre bananas milionárias e velhos amigos – não os comparo, que fique claro! –, tento decifrar o mundo de hoje que temos pro jantar. Só me falta aparecer alguém, inspirado em Zeca Baleiro, para “misturar anáguas de viúva com tampinhas de pepsi e fanta uva num penico com água da última chuva...”

 

Arte ou macacada? Talvez o verdadeiro espetáculo esteja em nos fazer rir do absurdo, mesmo que, no fundo, o riso seja de nós mesmos. Entre criptomoedas e valores intangíveis, penso até no camburão que deveria estar na porta da Sotheby’s, de Nova York, não para prender os lances da imaginação, mas os exageros da lógica. Mas tudo leva a crer que dinheiro cai do céu para essa turma!

 

Desde a última quinta-feira, todas as manhãs, quando acordo, enquanto olho o espelho do banheiro, tento decifrar o que passa na cabeça do velho ranzinza que me encara. Seria ele um ready-made ou apenas mais uma peça deslocada numa paisagem modernosa?

 

Na corda bamba, lá vamos todos nós, entre a genialidade e o absurdo, pendurados como bananas numa galeria que insiste em chamar de arte aquilo que só reflete a loucura deste admirável mundo contemporâneo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2024

Fome, fúria e o mistério do pavão

Não sei vocês, mas sou daqueles que, ao ver um jornal ou revista antigos, não resiste à tentação de revisitar ecos de outros tempos. Quando vejo um recorte interessante, mergulho profundo numa viagem quase sem volta: o que terá acontecido com os protagonistas dessas histórias? Onde estão agora? Foram felizes? Deram certo ou desapareceram nas entrelinhas da vida?

 

Dias atrás, me deparei com um recorte da Folha de São Paulo, de 12 de janeiro de 2004, com um título tão surreal quanto o enredo: “Homem é espancado após matar pavão em praça no centro do Rio de Janeiro”.

 

Ilustração: Umor (Uilson Morais)

Paulo Roberto de Oliveira, 37 anos, desempregado e faminto, perambulava pelas ruas quando decidiu que um pavão, mais ornamentado que o próprio Clóvis Bornay no Carnaval, seria seu jantar. Não sabia que a ave, mais que um enfeite da fauna urbana, era mascote da comunidade de travestis da Praça da República.

 

Foi aí que entrou em cena o "bloco da fúria". Ao verem Paulo carregando o pavão desfalecido, os travestis iniciaram um verdadeiro carnaval de pedradas, pontapés e tapas. No desfecho, digno de seriado de TV, o miserável acabou com o braço preso às grades da praça, pendurado como um Judas em Sábado de Aleluia, até ser resgatado pelos bombeiros para ser indiciado por crime ambiental. Já os travestis, sumiram antes que pudessem ser chamados para esclarecer o "quase abate" de outro animal, da espécie supostamente o mais racional de todas. 





Já se passaram mais de duas décadas. O que aconteceu a Paulo? Está vivo aos 57 anos? Tem filhos e netos? Entrou na política? Fez carreira como influencer? Continua pulando grades na madrugada ou encontrou algum emprego entre uma reforma trabalhista e outra, podendo agora pagar boletos e impostos, ser chamado de consumidor e contribuinte? Quem pode me dizer? 

 

É certo que o desemprego (ou emprego informal) continua um monstro de setenta cabeças, crescendo com uma voracidade comparável à fome daquele fatídico dia, embora as estatísticas oficiais nem sempre reflitam esse estado de coisas no lado debaixo da Linha do Equador.

 

Mas não é só o destino de Paulo que me intriga (uma entre 250 mil almas em situação de rua no Brasil), e sim também o destino do coitado do pavão. Aquela inocente criatura, que poderia ter saciado a fome de outros viventes, acabou despertando a fúria desmedida de outros. Terá ele deixado algum legado proteico digno de nota? Chegou a transferir a sua carga genética para alguns filhotes?

 

Com meia dúzia de interrogações na cabeça, me transporto à canção “Pavão Mysteriozo” (da trilha sonora da telenovela global Saramandaia, de Dias Gomes), do cearense Ednardo que, nos anos setenta, carregava em suas asas críticas veladas à realidade opressora do regime militar.

 

O pavão daquele tempo não era nenhum desses jogadores de futebol chatos, deslumbrados e presunçosos, estrelas de um mundo midiático que se cotam acima daquilo que realmente valem. Nem alguns emplumados de gravata e paletó que conheci ao longo da minha vida profissional. O pavão de Ednardo era uma bela metáfora de voo, de liberdade, de fuga de uma realidade sufocante. E o folheto de cordel que inspirou o artista cearense (“O Romance do Pavão Misterioso”, publicado em 1923, por José Camelo de Melo Resende), tinha voltado a circular em um Brasil que sonhava voar para longe da repressão.

Gráfico

Descrição gerada automaticamente com confiança baixa


Vinte anos depois, talvez Paulo, se ainda circula por aí (caso tenha se poupado do vexame de morrer tão moço, como canta Ednardo!), seja só mais um rosto perdido entre estatísticas que servem ao conforto de quem vive fora da linha de fogo. Sua fome e sua fúria seriam testemunhas silenciosas de um sistema que perpetua a exclusão e alimenta a indiferença.

 

E o pavão? Mais do que uma ave, simboliza o orgulho ilusório de uma nação que valoriza cores vibrantes, mas esconde sob as penas a escuridão de quem ignora os vulneráveis. Como no cordel de José Camelo, esse pavão também tenta voar para longe, mas suas asas estão presas às grades da desigualdade, eternizando a miséria.

 

E nós, prostrados em nossos sofás, seguimos assistindo a esse drama social como se fosse só mais um episódio de uma novela que nunca termina. Talvez sejamos os verdadeiros pavões: encantados pelas aparências de um progresso ilusório, enquanto a fome, a injustiça e a exclusão permanecem. Fechamos os olhos, mas a fome – não só de comida, mas de dignidade – continua nos encarando.

 

Vou parar com essas "viagens" sobre recortes de jornais e revistas antigos. Já basta o noticiário do dia. Se bem que o problema não está em revisitar esses recortes, mas em nossa incapacidade de transformar as histórias que eles contam. Porque, a rigor, todo recorte é um espelho: reflete o que fomos e nos mostra o que ainda podemos ser.



quarta-feira, 13 de novembro de 2024

Traquinagens do acaso

Não posso garantir, mas desconfio que, em 1949, o imigrante libanês José Fares Haddad Lupus tenha sido vítima de uma das clássicas gafes datilográficas dos cartórios de antanho. Lá em Orós, no interior do Ceará, ao registrar o caçula, o nome pretendido era Raimundo Wagner. Saiu de lá, no entanto, com um Raimundo Fagner. Dona Francisca, a mãe, deve ter suspirado fundo. No fim, quem diria, o erro se revelou um golpe de sorte: o menino cresceu com um nome diferente e virou estrela de primeira grandeza, um dos maiores cantores e compositores do Brasil, dono de mais de 40 álbuns e uma legião de fãs espalhados pela América Latina.

 

Algo parecido aconteceu anos depois, em Penedo, Alagoas. Um amigo meu quase se chamou Wagner, mas seu pai (que nunca soube do caso envolvendo o imigrante libanês) saiu do cartório com a certidão de nascimento do filhão Wanger. Pode uma coisa dessas? O escrivão de Penedo superou o de Orós no quesito criatividade. Erro humano ou ato divino, pouco importa. Eram dois "Wagners" a menos no mundo. No Ceará, Fagner. Em Alagoas, Wanger, que, por obra do acaso, hoje trabalha lá pelas bandas de Fortaleza.

 


Fagner, conheço de longe, pelas ondas do rádio e pelas telas da TV. Foi uma das vozes que ecoaram do Nordeste para o Brasil, junto com Alceu Valença, Belchior, Ednardo, Geraldo Azevedo e Zé Ramalho, entre outros. Cada um, à sua maneira, misturou raízes regionais com elementos urbanos, mas Fagner escalou alguns degraus a mais: seu canto alto, às vezes esganiçado, dividiu opiniões. Mesmo assim, ninguém nega o talento que o levou a parcerias com figuras míticas como Chico Buarque, Elis Regina e Nara Leão.

 

Já Wanger, ou melhor, Gasolina – apelido que lhe caiu como um boné por causa da velocidade nos campinhos de futebol –, conheço de perto. No final dos anos 70, trabalhávamos na mesma empresa em Alagoas e fazíamos de conta que jogávamos. Enquanto eu, centroavante, esperava cruzamentos na área adversária, ele, ligeiro feito boato, corria como um Fórmula 1 pela beirada do campo, quando boa parte da turma engasgava o motor no álcool. Com trocadilhos.  

 

Anos depois, ele foi para o Rio, eu para Brasília, e só nos reencontramos em 1990, na Bahia. Casados e com filhos, dividíamos mais do que memórias: nossa pobreza era quase um patrimônio. Nossas “namoradas” criaram uma amizade que dispensava formalidades, e entre confidências, gargalhadas e lágrimas, atravessaram bons e maus bocados.

 

Mas a estrela de nossos encontros em família era sempre Wanger, com sua simpatia única. Churrasco no quintal? Improvisava uma churrasqueira com quatro paralelepípedos e uma grelha enferrujada, torta. A trilha sonora? Dois CDs: Fagner e Sinatra. “Nacional ou internacional?”, ele perguntava, se acabando de rir. Quem escolhia sabia que ouviria a mesma música até o sol pedir arrego em Vilas do Atlântico, nos arredores de Salvador.

 

Foi num domingo como outro que a molecagem me pegou de jeito. Voltávamos da praia, eu e meus dois filhos (de 13 e 10 anos), cansados de tanto mergulho. Gasolina e os seus ficaram na barraca Odoyá Iemanjá. Com o corpo ainda anestesiado pelas cervejas do dia, tive uma ideia estúpida: tocar a campainha de uma mansão e sair correndo. Sem avisar os meninos, apertei o botão e disparei feito um doido ou um dos capitães de areia da obra de Jorge Amado.

 

No auge da traquinagem, meu pé encontrou uma pedra saliente. Foi um encontro desastroso: a danada nem se mexeu e meu dedão quase foi amputado. Sangrando e mancando, cheguei ao carro, onde minha mulher e nossos filhos me olhavam com aquele julgamento mudo que dispensa palavras: "Isso é papel de pai?", devem ter pensado.

 

Na segunda-feira, lá estava eu, de paletó e gravata, um pé no sapato, outro numa sandália. Liturgia do cargo ou palhaçada fashion, cada um que tirasse suas conclusões. Na reunião matinal, tentei manter a compostura e convencer os colegas de que o curativo era herança de uma pelada no sábado. Wanger, na maior cara dura, ainda ofereceu um par de chuteiras para a próxima. O sorriso apertava os olhos e fazia escorrer óleo de peroba pelos cantos do bocão.

 

Dias depois, a ferida cicatrizou, e o episódio caiu no esquecimento. Mas bastou um jantar recente em Maceió, regado a pão, vinho e risadas, para espreguiçar a criança que cochila dentro de nós. E lá estava, esperta e saltitante, pronta para novas travessuras.

 


No fundo, é isso que nos salva: rir dos tropeços e relembrar velhas histórias com quem compartilha o peso – e a leveza – de nossos caminhos. O acaso pode até pregar peças, sim, mas são as amizades que nos ajudam a transformar pedras em degraus. Viver também é equilibrar-se entre gafes de cartório, churrasqueiras improvisadas e estrepolias inesquecíveis.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Ecos de uma paixão

Os primeiros sintomas apareceram nos campinhos empoeirados nos arredores de Patos, no Sertão paraibano, onde brinquei de jogar bola até os 10 anos de idade. Naquela cidade também ouvi pela primeira vez a narração de uma partida de futebol entre o Nacional (de Canário, Lulu e Perequeté) e o Esporte, pela Rádio Espinharas, cujo locutor morava na mesma rua que eu. 

 

Fotografia: Edson Carvalho *

Quem viveu a experiência viu que futebol "assistido" e "irradiado" eram universos paralelos, habitados por emoções distintas. No rádio, os narradores faziam da partida um drama épico, mesmo quando, no campo, a bola circulava preguiçosa de um lado para o outro, sob um sol particular para cada um. 


Pelas ondas sonoras, cada ataque era uma investida heróica, uma marcha contra trincheiras inimigas. E o gol não era apenas uma bola que atravessava a linha de fundo e adormecia nas redes. Era êxtase coletivo, um urro em coro – Gooool! O futebol ao vivo se sentia absurdamente diminuído, sem a grandiosidade que a voz do rádio lhe conferia.

 

O rádio era uma alquimia de vozes que criava paisagens invisíveis. Não era som sem imagem, era som inventando imagens, costurando realidades além das limitadas por olhares míopes. E isso não se restringia ao futebol. O noticiário carregava uma autoridade quase mítica, uma presença que a TV nunca alcançou – uma voz firme preenche o imaginário de forma mais profunda que qualquer imagem de um locutor maquiado e com todos os fios de cabelo no lugar.

 

Diferente de agora, nunca troquei o campo pelo sofá. Ir ao jogo era ritual, ainda que, na prática, o espetáculo nem sempre fosse o drama pulsante que o rádio sugeria. Mas o casamento entre esses dois universos só veio quando ganhei meu primeiro radinho de pilha. Ali, com os olhos no campo e os ouvidos na narração, o futebol se completava: eu tinha o jogo visto e o contado, duas faces da mesma paixão.

 

Era o tempo dos narradores que, sem a imagem para provar ou contestar, dramatizavam cada lance. As narrações, verdadeiras obras de ficção, eram projetadas do meio da torcida ou da beira do campo, sem o luxo das cabines fechadas. 


Nos anos 1970, nas Alagoas de Arivaldo Maia, Édson Mauro, CSA e CRB, a TV enfim chegou lá em casa. As imagens passaram a dispensar certas palavras, e o "tira-teima", mais adiante, trouxe a precisão dos números, das distâncias – como se a emoção pudesse ser medida. 

 

No rádio, o narrador precisava de uma assinatura própria, algo além de um bordão, uma marca poética que elevasse a grandiosidade do lance: um drible, um chute, um gol raro, decisivo. Isso acabaria migrando para a TV, além de, mais recentemente, para plataformas digitais como UOL Esportes, GloboEsporte.com e SportTV Play.

 

Quatro desses porta-vozes da emoção (alegria, medo, raiva, surpresa, tristeza e outras) foram marcantes na consolidação de minha paixão pelo futebol. 


Geraldo José de Almeida, a voz do tricampeonato mundial na Copa do México, em 1970, eternizou frases como "Que é que é isso, minha gente!", "Olha lá, olha lá...", “Por pouco, muito pouco mesmo”, e criou apelidos inesquecíveis como "Craque café" (Pelé), “Mineirinho de ouro” (Tostão) e "Garoto do Parque" (Rivellino). 

 

Os bordões de Waldir Amaral até hoje ecoam em meus ouvidos: "Estão desfraldadas as bandeiras do... Um tirambaço sensacional, fuzilou...!”. “Dez, é a camisa dele... Indivíduo competente...". “Tem peixe na rede do...” e "O relógio marca...". Foi ele quem apelidou Garrincha de “Demônio de pernas tortas”, Denilson de "Cacique de Ramos" e Zico de “Galinho de Quintino”.

 

Lembro ainda de Januário de Oliveira, mestre em apelidos. Chamava Ézio de "Super-Ézio", Valdir Bigode de “O matador de São Januário” e Sávio de "Anjo Loiro da Gávea". E gritava: "Taí o que você queria, bola rolando…", "Tá lá um corpo estendido no chão", “Tá na área, é agora, bateu...”, “É disso, é disso que o povo gosta!”, “Cruel, muito cruel...”  

 

E o irreverente Silvio Luiz, autor de expressões impagáveis como "Olho no lance!", "Pelo amor dos meus filhinhos", “Pelas barbas do profeta”, “Foi, foi, foi ele, o craque da camisa...”, “É mais um gol brasileiro, meu povo, encha o peito, solta o grito da garganta e confira comigo no replay”, além de “Entortou a bigorna”, “Desandou a maionese” e “No pau!” – quando a bola acertava as traves, bem entendido. 

 

Ando, reconheço, com certa má-vontade em descobrir novos porta-vozes. Não vejo mais ninguém feito Waldir Amaral, quase sete da noite de um domingo qualquer, há meio século, contar como viu o gol mais bonito da história do Maracanã: Vasco e Botafogo empatavam quando, no último minuto, Roberto Dinamite, um semideus da bola, atingiu a perfeição (ouça aqui). Meus olhos chuviscaram.


Desde os campinhos empoeirados no Sertão paraibano, o futebol para mim nunca foi só brincar de jogar bola. Tinha cheiro e gosto de paixão e poesia no ar.   


(*) - A imagem que ilustra este texto, do amigo fotógrafo Edson Carvalho, foi a 1ª colocada do Concurso de Fotografia do Museu do Futebol 2024, São Paulo (www.museudofutebol.org.br).







quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Foi só começar...

Na semana passada, publiquei neste espaço uma crônica sobre códigos e jargões corporativos que fez alguns leitores voarem de teco-teco pelo passado, cada um revisitando seu próprio álbum de figurinhas.


Ilustração: UMOR (Uilson Morais)

 

Mal deu sete da manhã, e lá estava Seu Vivi, leitor assíduo, alertando para a insuficiência de meus achados: “Faltou coisa aí, hein!” Trouxe uma lista das boas e velhas memórias: o “oitavado”, o post-it raiz sem cola, perfeito para rabiscos e recadinhos internos; a “liga”, a borrachinha que unia pacotes de cédulas; e o “posto efetivo”, aquele cargo inicial que soava quase como sentença perpétua.

 

Outro leitor, Avelar, lembrou-se de um colega da agência de Bom Jesus (PI), que, ao cruzar com alguém solteiro, soltava: “Você está 0.17.019”, referindo-se ao código de um cheque avulso. Já Jaílton evocou o “talo verde”, aquele cartão de alerta na Bateria para que os caixas segurassem o novo talão até resolverem uma pendência.

 

Esclareci que só citei alguns exemplos para caber nas 800 palavras de sempre. Mas, claro, dezenas de outras expressões poderiam nos teletransportar de volta no tempo. Afinal, como costumo dizer, ninguém sabe o valor de um momento até que ele vire memória.

 

Falando em memória, a crônica rendeu pérolas como a do Maurício "Jacaré", que desabafou: “Já vi cliente quase arrancando os cabelos ao saber que o depósito havia ‘caído na vala’ – um lugar onde acumulávamos pendências de processamento no CESEC Arcoverde”.

 

Quatro dias depois, Maria Fernanda trouxe outra história: “No Sedan-Rio, eu orientava pessoas perdidas entre os 41 andares. Um dia, uma senhora desesperada chegou: ‘Meu dinheiro sumiu, mandaram procurar na vala negra!’ Engoli em seco e expliquei que a vala não era nem negra, nem vala…”

 

Já o Antonio Sérgio, de Brasília, relatou que, quando o banco liberou camisas coloridas, ele apareceu com uma listrada em tons suaves. O subgerente, uma espécie de xerife dos bons costumes, chamou-o e, com a autoridade do cargo, sentenciou: “Antonio Sérgio, liberamos cores sóbrias. Mas não todas ao mesmo tempo, e numa só camisa!”. Silas, da Bahia, ainda completou: “O subgerente até podia fazer um trocadilho: liberamos cores sóbrias, mas hoje, na sua camisa, cores sobram!”.

 

Volney relembrou uma situação cômica em Itaberaba (BA), quando um humilde lavrador buscava um financiamento agrícola, confiante no seguro PROAGRO para enfrentar a seca. No entanto, ao revisar o cadastro, descobriram que ele era "responsável pelo protesto de um título cambial", o que impedia o empréstimo. Ao explicar a situação de maneira gentil para evitar constrangimentos, Volney ficou surpreso com a reação: o pequeno produtor rural, decepcionado, reclamou em tom respeitoso que "votava todo ano e seguia todas as regras, mas eles faziam isso com seu título”. Mas não declinou quem seriam “eles”, provavelmente, os de sempre. 

 

Eu já estava satisfeito com a repercussão da crônica quando, na noite passada, um velho amigo esteve em minha casa e me contou a saga de seu concunhado, que esteve tão mal de saúde que a filha foi retirada das férias pela mãe, com uma mensagem curta e aterrorizante: “Pode voltar. De hoje seu pai não passa!”

 

Ao chegar aflita, no dia seguinte, encontrou o pai sentado na cama, distraído, sorriso no canto da boca. Havia lido a crônica e agora rabiscava uma lista de termos que a filha, coitada, não entendeu nada: denorex, arquivo-morto, alívio, reforço, cintado, cheque-de-viagem, dilacerado, genérico… “É esse que vai morrer hoje?” – ela indagou.

 

A filha não imaginava que, nos anos 1980, a propaganda de um xampu popularizou o bordão: “Denorex, parece remédio, mas não é”. Pegou tanto que virou expressão nacional. Assim, quando a empresa foi obrigada a abrir centenas de filiais da noite para o dia, criou-se um arremedo de estrutura que logo ganhou o apelido de “Denorex”: parecia agência, mas não era.

 

Ela também desconhecia que “arquivo-morto” não guardava relação alguma com os presos políticos desaparecidos durante a ditadura – era só um armário de documentos para expurgo. E “alívio” e “reforço”? Nada mais que transferências para a tesouraria da agência, equilibrando o excesso de dinheiro (ou suprindo as gavetas dos caixas) durante o expediente.

 

Já o infame termo “genérico” – derivado da indústria farmacêutica – designava funcionários contratados a partir de 1998, sem alguns dos direitos trabalhistas dos “dinossauros”, como férias de 35 dias, abonos por assiduidade e licenças-prêmio. Para a organização, custavam menos e produziam o mesmo efeito. Com o tempo, claro, conquistaram a inevitável isonomia de tratamento.

 

Pois é, mexer com esses assuntos – e coçar – é só começar. Os flashbacks não apenas resgatam o passado, mas permitem uma reflexão sobre como as memórias e o vocabulário corporativo evoluem, e como se entrelaçam com a identidade dos “sobreviventes”. Cada exemplo nos remete a uma realidade que, embora possa ter se transformado, deixou marcas duradouras em cada criatura.





 

 

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

A verdade sobre códigos e jargões

O mundo corporativo está cheio de códigos e jargões que, além de facilitar o dia a dia, revelam muito mais do que imaginamos. Não falo da enxurrada de estrangeirismos como approach, benchmark, coach, deadline, feedback, home office, know-how, networking, spread, turnover e outros. Esses já viraram lugar-comum, e a incorporação deles parece irreversível. Até Ariano Suassuna teria dificuldade em chamar o mouse de “rato”. E o notebook de hoje, em suas oito letras, já substitui muito bem o combo caderno, caneta e dicionário, que as crianças de hoje aprendem a usar antes mesmo de falar.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


Depois de quatro décadas nas entranhas de uma organização bicentenária, colecionei expressões impagáveis que só quem viveu esse ambiente entende. Em uma empresa tradicional cuja marca no Brasil é sinônimo de "banco", parte do repertório remontava às grandes guerras do século passado:

Bateria – área dos caixas.

Plataforma – área de atendimento aos clientes.

Retaguarda – setor responsável, então, pelo processamento dos documentos gerados na Bateria.

Ajudante de serviço – cargo comissionado parecido com ajudante-de-ordens, espécie de secretário pessoal de um oficial militar, da polícia ou do governo.

Pé-na-cova – abono concedido a funcionário prestes a se aposentar, mas que a empresa preferia manter por mais algum tempo.

 

As confusões que esses termos criavam também eram inesquecíveis. Um caso famoso ocorreu na Bahia, quando um caixa orientou um cliente a procurar a "Plataforma" para resolver seu problema. O cliente, achando que se referia ao bairro Plataforma, pegou o ônibus até o subúrbio de Salvador.

 

Códigos como o modelo 03/14 – uma folha A-4 usada para correspondências e contratos – eram corriqueiros. Mas, para rabiscos rápidos, um caricaturista genial “inventou” o modelo 03/07: a folha A-4, cortada ao meio. 

 

Para arquivar, utilizava-se o grampo trilho metalizado, conhecido como "macho-e-fêmea", um termo mais revelador de carências afetivas do que da função do material.

 

Outra expressão picante era "gozar no papel". Quando alguém chegava ao prazo fatal para gozar férias, mas não podia se ausentar, a solução era registrá-las formalmente, porém seguir trabalhando. Depois, compensava com folgas, assinando a folha de ponto.

 

Esses códigos e jargões, criados para facilitar a vida, às vezes se tornavam verdadeiros enigmas. Por exemplo, "espelho", para designar o documento que especificava o ordenado bruto e suas deduções, para mim refletia bem mais que isso. Espelho, espelho meu, existiu alguém mais inconformado do que eu diante do salário líquido no começo de tudo?  

 

Outro clássico era a “igrejinha”, um formulário com aba dobrável, usado para pedir documentos ou cobrar dívidas atrasadas. Tinha uma aparência quase solene, como uma convocação divina ao Juízo Final.

 

E o “cheque-ouro”, inovação dos anos 1960, onde o banco garantia o pagamento de cheques de alguns clientes, com ou sem fundos (os cheques, claro!)? Virou sinônimo de cheque especial, alívio para muitos, mas armadilha para outros tantos.

 

Quando passei pela área de RH, descobri outras expressões igualmente curiosas:

Esmolão – funcionário que perdia o cargo e aguardava, recebendo salário, por uma nova função. Quando transitava de um lugar para outro, sem cargo definido, dizia-se que estava "arrastando correntes" – uma imagem longe de glamurosa.

Sorvetão – alguém em situação análoga, mas sem perspectivas de reaproveitamento, cujo salário "derretia" em alguns meses até secar.

 

Mesmo usadas com humor ou resignação, essas expressões escondiam verdades incômodas: elas suavizavam dramas humanos profundos, de gente tensa e à espera de um destino incerto. Funcionavam como uma espécie de escudo, mas, no fundo, havia uma realidade implacável.

 

A história mais curiosa que ouvi sobre esses códigos e jargões me foi contada por um querido amigo. Antigamente, para apurar a reputação de uma pessoa, investigava-se por meio dos "influenciadores analógicos" locais, da igreja ao cabaré (normalmente, o mais certeiro nas informações), passando por barbearia, bodegas e botecos.

 

Meu amigo tinha uma fonte especial: um velhinho que sabia tudo de todos. Enquanto escutava sua fonte, ele resumia os relatos com números. Pares significavam boas referências; ímpares, más notícias. Por exemplo, 10, 12 e 14 eram sinônimos de honesto, bem referido, pontual em seus pagamentos. Já 09, 11 e 13 indicavam emitente de cheques sem fundos, paga com atraso, tem ações cíveis, criminais ou títulos protestados.

 

Certa vez, investigando um comerciante interessado em levantar um “papagaio” – outro jargão exótico para nota promissória –, o velhinho foi categórico: “Esse aí é 11, 13, 15... E olhe lá, hein?! Daqui a pouco chega a 19!”.

 

No fim das contas, na fala cifrada de uma organização ou nas palavras astutas de um contador de histórias, a verdade sempre acaba se revelando, mesmo que venha disfarçada de códigos enigmáticos. 


E jargões podem distorcer ou suavizar, mas a essência das coisas vem à tona. Seja deadline ou pé-na-cova, a verdade sempre retorna, como um cheque sem fundos. Se é que ainda existem – cheques e verdades.





quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Café de ninguém

Estou há três semanas sob o céu esbranquiçado e sem graça de São Paulo. Durante a caminhada matinal, vi, não uma, mas duas vezes, um gari de uniforme cenoura encostado numa esquina da Rua Domingos de Morais, na Vila Mariana, segurando um copo de café. Lá estava ele, do lado de fora, como se o meio-fio fosse seu lugar natural no mundo. 

Na primeira vez, desconfiei, mas fiquei calado. Na segunda, decidi me aproximar. Batizei-o de Jorge, nome de guerreiro, e minha mente viajou à Zona da Mata alagoana em que morei no final dos anos 1960, onde outro Jorge – não o poeta de “Essa Negra Fulô” e “O Acendedor de Lampiões” –, parecido e tão invisível quanto ele, sobreviveu por alguns anos. 

 

Lá em União dos Palmares (AL) não havia água encanada. O Jorge de lá, maneta desde menino, mutilado na colheita de cana, vendia água de cacimba para beber e outra, retirada do Rio Mundaú, para os demais usos. Das quatro às cinco da manhã, dia sim, dia não, ele bombeava água para a caixa de distribuição sobre a laje de nossa casa. E, sempre que o barulho era mais forte, ele nos tranquilizava: “Né ninguém não, sou eu...” Hoje entendo o que ele queria dizer.  

 

Perguntei ao Jorge daqui se ele estava na calçada por escolha, curtindo o seu café enquanto assistia aos passantes apressados tentando aquecer alma e corpo nos 15 graus matinais, ou se o balconista lhe pedira para tomá-lo do lado de fora por algum motivo. Ele, com um olhar conformado, quis me enganar com a dura poesia concreta daquela esquina:
– Tinha tanta gente lá dentro...



Ilustração: ChatGPT

 

Cidade grande é assim. Ela não manda recados, não avisa quando é hora de você deixar de ser alguém e passar a ser ninguém. São Paulo te engole sem mastigar. E ali, entre a esquina pichada, a lixeira e o meio-fio, Jorge parece mais um pedaço da paisagem, como o poste e a sarjeta, invisível para quem passa e não quer ver. Não é só o clima que é frio por aqui.

 

Eu carregava uma sacola com algumas roupas que ia doar à Paróquia de Nossa Senhora da Saúde. Decidi dar outro destino: no banheiro da estação Santa Cruz do metrô, Jorge vestiu parte delas, lavou o rosto, deu uma ajeitada no cabelo. Voltaríamos ao mesmo local para uma refeição decente – suco de laranja, pão na chapa, ovos mexidos e café com leite. Ele aceitou com silenciosa gratidão.

 

Jorge agora de calça de sarja, camisa polo e agasalho, foi recebido com simpatia pelo mesmo balconista que, meia hora antes, o pediu para se servir do lado de fora. Vai ver que nem o reconheceu. É curioso como uma troca de roupa muda a percepção das pessoas, não é? O balconista, que antes nem o notou, agora o cumprimentava com um sorriso e até puxou conversa sobre as eleições para prefeito. Perguntou o que achava de um abaixo-assinado sugerindo três candidatos no segundo turno, já que a diferença entre eles fora de menos de 1% dos votos. Jorge, desconcertante, desarmou o balconista: 

– E se o terceiro colocado fosse um dos dois primeiros ele toparia?

 

O balconista calou-se. Mas a cidade, essa não cala nunca. Continua rugindo com seu trânsito doido, suas sirenes e seus prédios apontando para céu branco, enquanto reservam elevadores de serviço aos invisíveis. Para os privilegiados, sempre haverá quem não passa de “carga”. E o que me assombra não é essa divisão, mas a passividade com que aceitamos ser apenas plateia nesse espetáculo cujo final se imagina qual será. Ainda assim, fingimos surpresa quando as cortinas caem e as luzes se apagam.

 

Otto Lara Resende, em sua famosa crônica “O monstro da indiferença”, que já decorei de tanto reler, acertou em cheio. Ela narrou a história de um homem que, por 32 anos, cruzava todos os dias com o mesmo porteiro. Dava-lhe um “bom dia” automático, pegava a correspondência, um ou outro recado. Até que, um dia, o porteiro cometeu a descortesia de morrer. Só então o homem percebeu que nunca soube seu nome, nunca olhou na sua cara, nunca quis saber se ele melhorou da tosse da semana anterior. O porteiro precisou morrer para ser notado.

 

E assim seguimos. Elevadores de serviço, café no meio-fio (longe dos clientes habituais, limpos e perfumados – se bem que caráter ainda não tem cheiro!)Garis, faxineiras, porteiros e zeladores invisíveis. Não são os monstros que nos assustam, mas nós mesmos, quando o espelho nos revela a deformidade que criamos ao banalizar a indiferença.

 

Esta é uma história parcialmente fictícia, porém absolutamente verdadeira, pois refletindo sobre a brutalidade silenciosa da exclusão, já não me lembro sobre o que é uma coisa ou outra.

 

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