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Não ia dar certo, entende?

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Na  live  “Pelé, 80 anos” apresentada outro dia pelo  site   UOL Esporte  em homenagem ao aniversário do Rei do Futebol, o jornalista Cláudio Arreguy contou uma história deliciosa de como o mundo esportivo quase foi vítima do acaso e engrossaria o caldo das coisas que poderiam ter sido e não foram.    Dizia ele que Dr. Prata, médico e pai do escritor Mário Prata, sugeriu a Dondinho, o pai de Pelé, que convencesse o filho a prestar concurso para o Banco do Brasil. “Futebol não dá futuro a ninguém! Bota o rapaz no Banco do Brasil que lá ele tem futuro garantido”.    Apesar de a sugestão partir do único e respeitável médico da Bauru na metade da década de 1950, prevaleceu o saber popular: “Se conselho fosse bom...”. Note-se que, naquele tempo, não se imaginava que mais de meio século depois haveria “médico” aconselhando cloroquina para combater uma gripezinha sazonal.  Posso até não discutir o estrago que o conselho do Dr. Prata a Dondinho, se acatado, causaria ao futebol mundial, mas me

Almas virtuais

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Toda pessoa morre duas vezes. A primeira quando é sepultada (ou cremada) e a segunda quando seu nome é mencionado pela última vez. Poucas ficam na memória por séculos, como Cristo, da Vinci, Joana d’Arc, Beethoven, Newton, Darwin ou Madre Teresa de Calcutá. A maioria não resiste nem mesmo na lembrança de seus descendentes. Minto se disser que recordo o nome completo de minhas bisavós. Na  série de ficção científica  Black Mirror,  lançada há 10 anos, uma viúva faz contato com a versão virtual de seu falecido marido através de um serviço revolucionário. A aproximação começa com mensagens de texto, já que o sistema fora alimentado por uma base de dados ( chats, e-mails , imagens, redes sociais etc.) sobre o comportamento do casal em suas interações  enquanto ele ainda era vivo. A partir de áudios e vídeos, o serviço consegue reproduzir vozes e a permitir entre eles o contato por celular (o "espelho negro"). Mais que isso, cria um andróide à semelhança do falecido que é c

Memórias de meu cárcere

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Como não beber dessa bebida amarga? Parece fácil acordar às quatro e meia da madrugada  e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, por uma hora, a tropeçar aqui e ali nas quinas que se metem no meu caminho entre a cozinha e a varanda onde o vento e os primeiros sinais de luz juram que a agonia vai passar.   Parece simples trocar o noticiário da hora pelas canções de ontem, a engolir minha dose de alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Prefiro ouvir Simone cantar Aldir, a dizer que posso pegar aquele feijão preto, pôr meia dúzia de latas pra gelar e mudar a roupa de cama que tudo volta já. Parece fácil preparar todo dia a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão ou vinagre, no forno ou no fogão, depois de limpa a última ruga da folha de alface como se ali cochilasse o monstro insaciável que pode acabar com tudo em duas ou três semanas. Faz de conta que é natural ver Magdala resignada, sem botar os pés na calçada há sete meses – nem mesmo

Entre compadres

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A  cumpadragem  é coisa muito séria por aqui, como diz o poeta Jessier Quirino. Muito mais que o jeito pelo qual uma pessoa se torna aparentada de outra através do ritual católico do batismo, esse parentesco por afinidade chega a ser maior que laços de sangue porque compadre é escolha; parente, não. Um caso sequer não me lembro de um amigo convidar outro para batizar o filho e o escolhido arranjar desculpa para escapar do compromisso, do tipo: “Não sei se vou estar na cidade no dia...” “Quem sabe é melhor você chamar alguém da família...” Se isso acontecer, a encrenca é feia. É desfeita a ser resolvida a murros e tabefes, com direito do ofendido de invocar a legítima defesa da honra.   Chicó Neto e João Grilo Neto – descendentes dos andarilhos da Taperoá dos anos 1950, de "O Auto da Compadecida" –, amigos desde as primeiras letras e números, eram bancários, quarentões, além de compadres e vizinhos no bairro de Manaíra, na orla de João Pessoa, até o começo do ano p

Confissões perigosas

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Apesar de Trump, os Estados Unidos continuam sendo o principal destino dos brasileiros que vão morar fora do país, por conta de oportunidades de emprego, segurança, qualidade e estilo de vida. Um milhão e meio deles vivem por lá, dos quais metade em quatro estados: Flórida, Califórnia, Massachusetts e Nova Jersey. Trezentos mil moram próximos a Boston, capital do estado de Massachusetts, em cidadezinhas como Everett e Framinnghan. É lá que vive há mais de uma década Valéria Sweet, uma mineira de Caratinga, dos cabelos cacheados, olhos pretos e miúdos, que criou um negócio interessante.   Ela sabe que cada povo tem um jeito todo próprio de encarar a vida e de se relacionar com a morte.  Aqui, por exemplo, afora Zeca Pagodinho e família, não é costume organizar uma reunião, com buffet e tudo, para receber as pessoas que forem ao enterro. No Brasil,  os velórios, geralmente, acontecem na capela do cemitério e o tempo para preparação do corpo é de, no máximo, 24 horas após a mort

Mestres por acaso

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Jurandir nunca foi de rascunhar. Apenas franzia a testa, limpava os óculos, punha o papel na máquina e preparava cartas, memorandos e fichas cadastrais irretocáveis. Para mim, que aos vinte e poucos anos a tudo assistia com olhos e ouvidos abertos para o espetáculo de um novo mundo, aquilo explicava a correspondência regular que ele mantinha com um certo Drummond, como se fosse a coisa mais natural ser íntimo do itabirano autor de  Poema de Sete Faces , mesmo vivendo a milhares de quilômetros. Seis anos mais novo que eu, o filho de Jurandir (Jurandir Neto) nascera num 16 de setembro, mesma data em que veio ao mundo Rita de Cássia, herdeira de Maerbal. Vez por outra os pais lembravam essa coincidência cósmica que apertou ainda mais os cadarços da amizade que lhes unia. Maerbal, por sinal, perito de balanços, conciliava o amor pelo ofício bancário com outra paixão bem resolvida: transmitir o que sabia a estudantes universitários, como eu, de contabilidade, economia e administra

Santo remédio

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De cara fechada, sem batom, uma das ascensoristas do templo bancário da Cidade Baixa, onde trabalhavam mais de 500 pessoas, pilotava o seu elevador com a preguiça das segundas-feiras quando Rivaldo meteu a mão no bolso do paletó e lhe ofereceu um punhado de confeitos: — Pegue, moça, chupe! — Por quê? — É um santo remédio. Nunca vi ninguém triste chupando confeitos. Ele chegara à Bahia em junho de 1992, vindo do Recife. Voltava ao Banco do Brasil depois de um período cedido ao governo de Pernambuco em que ocupou a diretoria de RH do extinto Bandepe . Casado com Bárbara, analista de projetos da Sudene , formavam um casal bem humorado e carinhoso com filhos e amigos. Na semana anterior,  um puxa-saco escolado que havia na área, ao  saber de sua origem sergipana e por ser freguês de um restaurante no Dique do Tororó que servia um cabrito guisado com aipim e farofa d'água de comer com os olhos a meio pau, alisava as pontas do bigodão ao indagar:  — Chefe, você gosta de

Chance, martírio e toalha

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Logo após a  Copa do Mundo  de 1970, no México, quando o Brasil conquistou em definitivo a taça  Jules Rimet , surgiu no  Centro Sportivo Alagoano (CSA)  um ponta-esquerda driblador, raçudo e veloz, um verdadeiro azougue para seus adversários. Chamava-se Ricardo. Na época, um cartola do  Esporte Clube Bahia  conseguiu convencer a diretoria do clube alagoano a levar o garoto para realizar testes em Salvador antes de decidir por sua contratação. No primeiro treino na Fazendinha – antigo centro de treinamentos no bairro da Pituba, em Salvador –, Ricardo, aos 18 anos, rendeu bem acima do esperado contra os titulares do  Tricolor de Aço , que contava com estrelas regionais como Picasso, Aguiar, Sapatão, Roberto Rebouças, Baiaco, entre outras. A conversa então se deu ali mesmo, à beira do campo: – Bom, Ricardo, você tem futuro   – disse o cartola, tentando mascarar o entusiasmo para não comprometer a proposta salarial a ser feita –, mas ainda é muito verde para jogar num clu

A sacanagem de Jobim com João

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Nada de maestro, compositor, pianista, cantor ou arranjador musical. Nem um dos criadores da  Bossa Nova . O Jobim a quem me refiro era caixa do  Banco do Brasil  nos anos 70, na agência de Maceió. Cara de areia mijada, óculos na ponta do nariz, timbre de voz grave, ele contava cédulas mordendo a língua. Vivia a pregar peças e a perturbar o juízo das mais variadas pessoas e ninguém sabia ao certo quando falava sério ou de brincadeira. Certa vez, ao atender a um cliente que sacava alta quantia em dinheiro, de propósito ele trouxe um dos pacotes cintados de 100 cédulas com duas notas a menos e aproximou-se com o maço desfalcado na palma da mão, balançando, como se estivesse “pesando a mercadoria”: — Sei não... Deve tá faltando duas cédulas... — Então, conte o dinheiro, rapaz! — propôs o cliente. Jobim simulou contar, recontar e, confirmada a falta, completou o pacote com duas cédulas retiradas da gaveta do caixa. O cliente arregalou os olhos e saiu dali impressionado, a