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Donas do amanhã

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Gostei da notícia de que um pé de pequi, que dá frutos há mais de 10 anos, foi deixado no meio da rua recém-asfaltada pela prefeitura de Araguaína, no estado do Tocantins. Crianças ficaram apreensivas com a possibilidade de a árvore, tida como “de estimação”, ser derrubada na execução do serviço. A prefeitura reconheceu o clamor popular e que o pequizeiro não trará prejuízos ao trânsito. Uma ilha de concreto será instalada ao redor, além de sinalização no local.   Tirante eventual exploração político-marqueteira, é elogiável o incentivo à preservação ambiental, fruto do carinho de uma comunidade para com seu querido pequizeiro. E isso me faz recordar dois casos que já estavam devidamente arquivados no gavetão de minha memória.   Lembrei-me de uma velha estaca de madeira fincada próximo à linha lateral imaginária de um campinho de futebol que serviu de cenário para alguns rachas de minha infância. Fazia-se de surda e nunca ninguém conseguiu convencê-la a mudar de lugar para não atrapalh

Praga de guri

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O guri viu quando aquela mulher, fingindo alimentar as galinhas que ele criava no quintal com tanto carinho e milho, atraiu duas delas para a cozinha com seu tititi e um punhado de grãos, liberou a menor, fechou a porta e condenou a mais gordinha à morte. Viu ainda quando a mulher pisou as pernas dela com a sandália do pé esquerdo e lhe depenou o pescoço, onde bateu com a lâmina da faca para “chamar” o sangue, cortou com um só golpe a carótida e o jorro vermelho escorreu numa vasilha até a coitada se render desfalecida. Guardou assim na memória uma das cenas mais marcantes de sua infância.  Sentiu-se pior ao se dar conta de que aquela mulher era a sua própria mãe. O mal-estar aumentou quando viu o corpo que tantos ovos lhe trouxera, ainda morno, ser jogado dentro de um caldeirão amassado  com água fervendo – o que afastava qualquer chance de socorro à custa de mercúrio cromo, gaze e esparadrapo – e dele serem retiradas todas as penas sem qualquer remorso. Depois, ainda veria sapecado n

Recortes peludos

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Tão esperada nas bancas quanto  a revista  Placar ,   Playboy  era “a mais manuseada das revistas brasileiras”, segundo o escritor Humberto Werneck, autor da crônica “Leitores e vedores”. Foi ele, aliás, quem nos anos 1980 sugeriu aos assinantes de   Playboy   que se autor rotulassem de “vedores”, termo bem mais preciso do que “leitores”.   A revista apareceu no Brasil em agosto de 1975 com o título  Homem . Na época, a censura achou inadequado o nome  Playboy  por associá-lo a perversão e nudez. Quatro anos mais tarde, nos primeiros sintomas de distensão “lenta, gradual e segura” do penúltimo governo militar, a publicação conseguiu dobrar a censura e levou às bancas um ousado ensaio fotográfico com as  playmates  de sua versão norte-americana. Durou 40 anos, com 487 edições publicadas.   A verdade nua e crua de  Playboy  –   com  duplo sentido , claro !  –  é que se via muito e se lia pouco. Na última década do século 20, ainda não havia a vulgaridade das imagens explícitas que hoje c

E aí, Neguinho, sumido, hein?!

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Na coleção  O Mundo da Criança  que havia na estante de livros lá de casa, minha irmã e eu, aos dez e nove anos de idade, um dia descobrimos e ficamos impressionados com uma lenda afro-cristã cuja origem remonta ao fim do século XIX. Foi muito popular entre os abolicionistas gaúchos   que lutaram pelo fim do vexame da escravidão numa terra de dimensões continentais. Dizia-se que um fazendeiro cruel com seus escravos e peões  mandou que um menino negro vigiasse no pasto alguns cavalos que acabara de comprar. De tardezinha, faltava um animal. O patrão então pegou um chicote e deu uma surra tão dura na criança que feriu feio suas costas. E arrematou aos gritos: "Vai ter que achar o cavalo agora ou vai ver o que acontece!".  O menino então saiu à procura do animal. A lgum tempo depois, encontrou-o num pasto nativo, laçou-o, mas a corda arrebentou e o bicho desapareceu de novo no meio da escuridão. De volta à fazenda, o dono, mais truculento que antes, bateu de novo na criança e a

Não ia dar certo, entende?

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Na  live  “Pelé, 80 anos” apresentada outro dia pelo  site   UOL Esporte  em homenagem ao aniversário do Rei do Futebol, o jornalista Cláudio Arreguy contou uma história deliciosa de como o mundo esportivo quase foi vítima do acaso e engrossaria o caldo das coisas que poderiam ter sido e não foram.    Dizia ele que Dr. Prata, médico e pai do escritor Mário Prata, sugeriu a Dondinho, o pai de Pelé, que convencesse o filho a prestar concurso para o Banco do Brasil. “Futebol não dá futuro a ninguém! Bota o rapaz no Banco do Brasil que lá ele tem futuro garantido”.    Apesar de a sugestão partir do único e respeitável médico da Bauru na metade da década de 1950, prevaleceu o saber popular: “Se conselho fosse bom...”. Note-se que, naquele tempo, não se imaginava que mais de meio século depois haveria “médico” aconselhando cloroquina para combater uma gripezinha sazonal.  Posso até não discutir o estrago que o conselho do Dr. Prata a Dondinho, se acatado, causaria ao futebol mundial, mas me

Almas virtuais

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Toda pessoa morre duas vezes. A primeira quando é sepultada (ou cremada) e a segunda quando seu nome é mencionado pela última vez. Poucas ficam na memória por séculos, como Cristo, da Vinci, Joana d’Arc, Beethoven, Newton, Darwin ou Madre Teresa de Calcutá. A maioria não resiste nem mesmo na lembrança de seus descendentes. Minto se disser que recordo o nome completo de minhas bisavós. Na  série de ficção científica  Black Mirror,  lançada há 10 anos, uma viúva faz contato com a versão virtual de seu falecido marido através de um serviço revolucionário. A aproximação começa com mensagens de texto, já que o sistema fora alimentado por uma base de dados ( chats, e-mails , imagens, redes sociais etc.) sobre o comportamento do casal em suas interações  enquanto ele ainda era vivo. A partir de áudios e vídeos, o serviço consegue reproduzir vozes e a permitir entre eles o contato por celular (o "espelho negro"). Mais que isso, cria um andróide à semelhança do falecido que é c

Memórias de meu cárcere

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Como não beber dessa bebida amarga? Parece fácil acordar às quatro e meia da madrugada  e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, por uma hora, a tropeçar aqui e ali nas quinas que se metem no meu caminho entre a cozinha e a varanda onde o vento e os primeiros sinais de luz juram que a agonia vai passar.   Parece simples trocar o noticiário da hora pelas canções de ontem, a engolir minha dose de alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Prefiro ouvir Simone cantar Aldir, a dizer que posso pegar aquele feijão preto, pôr meia dúzia de latas pra gelar e mudar a roupa de cama que tudo volta já. Parece fácil preparar todo dia a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão ou vinagre, no forno ou no fogão, depois de limpa a última ruga da folha de alface como se ali cochilasse o monstro insaciável que pode acabar com tudo em duas ou três semanas. Faz de conta que é natural ver Magdala resignada, sem botar os pés na calçada há sete meses – nem mesmo

Entre compadres

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A  cumpadragem  é coisa muito séria por aqui, como diz o poeta Jessier Quirino. Muito mais que o jeito pelo qual uma pessoa se torna aparentada de outra através do ritual católico do batismo, esse parentesco por afinidade chega a ser maior que laços de sangue porque compadre é escolha; parente, não. Um caso sequer não me lembro de um amigo convidar outro para batizar o filho e o escolhido arranjar desculpa para escapar do compromisso, do tipo: “Não sei se vou estar na cidade no dia...” “Quem sabe é melhor você chamar alguém da família...” Se isso acontecer, a encrenca é feia. É desfeita a ser resolvida a murros e tabefes, com direito do ofendido de invocar a legítima defesa da honra.   Chicó Neto e João Grilo Neto – descendentes dos andarilhos da Taperoá dos anos 1950, de "O Auto da Compadecida" –, amigos desde as primeiras letras e números, eram bancários, quarentões, além de compadres e vizinhos no bairro de Manaíra, na orla de João Pessoa, até o começo do ano p

Confissões perigosas

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Apesar de Trump, os Estados Unidos continuam sendo o principal destino dos brasileiros que vão morar fora do país, por conta de oportunidades de emprego, segurança, qualidade e estilo de vida. Um milhão e meio deles vivem por lá, dos quais metade em quatro estados: Flórida, Califórnia, Massachusetts e Nova Jersey. Trezentos mil moram próximos a Boston, capital do estado de Massachusetts, em cidadezinhas como Everett e Framinnghan. É lá que vive há mais de uma década Valéria Sweet, uma mineira de Caratinga, dos cabelos cacheados, olhos pretos e miúdos, que criou um negócio interessante.   Ela sabe que cada povo tem um jeito todo próprio de encarar a vida e de se relacionar com a morte.  Aqui, por exemplo, afora Zeca Pagodinho e família, não é costume organizar uma reunião, com buffet e tudo, para receber as pessoas que forem ao enterro. No Brasil,  os velórios, geralmente, acontecem na capela do cemitério e o tempo para preparação do corpo é de, no máximo, 24 horas após a mort

Mestres por acaso

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Jurandir nunca foi de rascunhar. Apenas franzia a testa, limpava os óculos, punha o papel na máquina e preparava cartas, memorandos e fichas cadastrais irretocáveis. Para mim, que aos vinte e poucos anos a tudo assistia com olhos e ouvidos abertos para o espetáculo de um novo mundo, aquilo explicava a correspondência regular que ele mantinha com um certo Drummond, como se fosse a coisa mais natural ser íntimo do itabirano autor de  Poema de Sete Faces , mesmo vivendo a milhares de quilômetros. Seis anos mais novo que eu, o filho de Jurandir (Jurandir Neto) nascera num 16 de setembro, mesma data em que veio ao mundo Rita de Cássia, herdeira de Maerbal. Vez por outra os pais lembravam essa coincidência cósmica que apertou ainda mais os cadarços da amizade que lhes unia. Maerbal, por sinal, perito de balanços, conciliava o amor pelo ofício bancário com outra paixão bem resolvida: transmitir o que sabia a estudantes universitários, como eu, de contabilidade, economia e administra