quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Donas do amanhã

Gostei da notícia de que um pé de pequi, que dá frutos há mais de 10 anos, foi deixado no meio da rua recém-asfaltada pela prefeitura de Araguaína, no estado do Tocantins. Crianças ficaram apreensivas com a possibilidade de a árvore, tida como “de estimação”, ser derrubada na execução do serviço. A prefeitura reconheceu o clamor popular e que o pequizeiro não trará prejuízos ao trânsito. Uma ilha de concreto será instalada ao redor, além de sinalização no local.

 


Tirante eventual exploração político-marqueteira, é elogiável o incentivo à preservação ambiental, fruto do carinho de uma comunidade para com seu querido pequizeiro. E isso me faz recordar dois casos que já estavam devidamente arquivados no gavetão de minha memória.

 

Lembrei-me de uma velha estaca de madeira fincada próximo à linha lateral imaginária de um campinho de futebol que serviu de cenário para alguns rachas de minha infância. Fazia-se de surda e nunca ninguém conseguiu convencê-la a mudar de lugar para não atrapalhar os meninos. É verdade que nenhum de nós esbarrou na estaca, tampouco dela sofreu uma rasteira ou coisa parecida. Era como se fosse um árbitro sem apito, sem aborrecer os dois times nem interferir no resultado dos rachas.  

 

Recordei também de uma medida na mesma linha da adotada pela prefeitura de Araguaína, porém de amplitude mais abrangente. Há pouco mais de 20 anos estive numa cidadezinha de oito mil habitantes encravada no Alto Sertão do Pajeú, a 300 km da capital pernambucana, chamada Tuparetama. Além do clima ameno a 500 metros de altitude, vi que defronte de quase todas as casas havia uma árvore, algumas ainda bem pequenas. Procurei saber do prefeito como o município conseguia arborizar as ruas e qual o custo daquela iniciativa, certamente onerosa para o modesto cofre da prefeitura. Respondeu-me, sorrindo, que em cada casa havia uma criança que fora sensibilizada a cuidar de “sua” planta em troca de uma ajuda simbólica – algo equivalente a 10% de um salário mínimo –, desde aguar pela manhã e à tarde, passando pela arranca de ervas daninhas, uso de estrume, até cerca de proteção, se necessário.

 

Percebi ainda que não existiam muros com pichações e fotografias, comuns sobretudo em campanhas eleitorais. Em lugar de propagandas políticas com imagens e letreiros de gosto duvidoso, foram pintados nas paredes caiadas versos de poetas populares.

 

Nada muito rebuscado. Poemas simples, enxutos e intensos, extraídos da alma de uma gente humilde, como aquele em que Manoel Xudu relatou:

Mamãe me dava papa,

Me deu leite, me deu bolo,

Ela que me deu consolo,

Me deu carinho, garapa.

Mamãe que me deu um tapa,

Mas depois se arrependeu.

Beijou aonde bateu,

Desmanchou a inchação.

Quem perdeu mãe tem razão

De chorar, porque perdeu.

 

Ou como rabiscou João Furiba, não se sabe se inspirado numa galinha, numa cabra, numa novilha ou numa donzela, digamos assim:

Eu também estou tristonho

Porque perdi minha bela.

Eu quisera arrumar outra

Pra botar no lugar dela.

Nem precisa ser bonita

Basta ser igual a ela.

 

Fui-me embora no fim da tarde e nunca mais voltei à cidade. Agora me pego pensando sobre o destino daquelas crianças sertanejas da segunda metade dos anos 1990, tocadas desde cedo pelo amor ao meio ambiente e à poesia. Por que essas comunidades representam ponto fora da curva e viram notícia com aquilo que deveria ser regra natural, como aprender a ler, escrever e contar?

 

No começo deste ano, numa histórica reunião ministerial, um certo cidadão alertava os demais participantes sobre o que considerava ser uma oportunidade trazida pela pandemia da covid-19. Para ele, o governo deveria aproveitar o momento em que o foco da sociedade e da mídia estava voltado para o novo coronavírus e mudar regras que poderiam ser questionadas na Justiça. Seria a hora, segundo ele, de fazer uma “baciada” de mudanças nas normas ligadas à proteção ambiental. Também nas suas palavras, hora de “passar a boiada”.

 

Resolvi checar a origem do sujeito e descobri o óbvio: não nasceu em Araguaína nem em Tuparetama. Talvez nunca tenha semeado uma planta ou cometido um poema. Se dedicasse um quarto de hora à leitura de Manoel de Barros, quem sabe descobriria que a importância de determinadas coisas não se mede com fita métrica, balanças nem barômetros, mas pelo encantamento que produzem nas donas do amanhã (as crianças de hoje), para quem plantas e poesias continuarão sendo indispensáveis. Certas criaturas, não. Podem ser trocadas até de “baciada”.

quarta-feira, 18 de novembro de 2020

Praga de guri

O guri viu quando aquela mulher, fingindo alimentar as galinhas que ele criava no quintal com tanto carinho e milho, atraiu duas delas para a cozinha com seu tititi e um punhado de grãos, liberou a menor, fechou a porta e condenou a mais gordinha à morte. Viu ainda quando a mulher pisou as pernas dela com a sandália do pé esquerdo e lhe depenou o pescoço, onde bateu com a lâmina da faca para “chamar” o sangue, cortou com um só golpe a carótida e o jorro vermelho escorreu numa vasilha até a coitada se render desfalecida. Guardou assim na memória uma das cenas mais marcantes de sua infância. 


Sentiu-se pior ao se dar conta de que aquela mulher era a sua própria mãe. O mal-estar aumentou quando viu o corpo que tantos ovos lhe trouxera, ainda morno, ser jogado dentro de um caldeirão amassado com água fervendo – o que afastava qualquer chance de socorro à custa de mercúrio cromo, gaze e esparadrapo – e dele serem retiradas todas as penas sem qualquer remorso. Depois, ainda veria sapecado numa boca do fogão o que restava de penugem.

 

O guri assistia paralisado ao desenrolar do filme macabro. Via em cores mortas o fim de sua protegida, com a matadora a cortá-la em pedaços – arrancou-se até a cabeça de olhos foscos e as pontas dos dedos com unhas e tudo – do tamanho das fatias em que seu coração de criança fora repartido. Chegou a imaginar que, de tão arrependida da atrocidade que cometera, ela agora tentava curar os ferimentos com uma mistura de vinagre, pimenta do reino, cominho, alho e sal. Mas já não havia sinal de vida quando perguntou por perguntar:

– E o sangue, vai jogar fora? E os ovinhos sem casca?

– Saia daí... Não mexe nisso! Vá brincar no quintal, agora! – rebateu a mãe.

 

Foi melhor. Era importante ir até o galinheiro checar como as amigas da infeliz reagiram ao que acontecera, se viram ou ouviram alguma coisa, se estariam necessitadas de um pouco de água para se restabelecerem do choque depois daquela tragédia numa manhã de domingo, dia em que, mais cedo, o guri vira a própria mãe de joelhos, na capela do colégio, a rezar pelo bem de todos, menos do galinheiro. Quem sabe iniciariam ali uma greve de fome em protesto pela morte da gordinha. Recusariam desde milho até as sobras de almoço e definhariam com dignidade até a morte – fim de todos os viventes – por uma causa nobre. "Quem não luta pelos seus direitos não é digno deles", diria o machão do quintal cantando de galo no pedaço.     

 

Era pouco provável, entretanto, que aquelas criaturas fossem resilientes e corajosas a esse ponto naquele distante ano de 1967. Para sua ingrata surpresa, o guri não notara no galinheiro sinais de tristeza ou de revolta, uma lágrima sequer fora derramada no chão diante da barbárie. Todas pareciam amoldadas à vida miúda de fundo de quintal, à espera da água, da comida ou do estupro diário do velho galo que, sem o menor romantismo, nunca negociou os termos de cobertura das namoradas. Inocente, aliás, o guri achava que aquilo não passava de gentileza para protegê-las do vento frio à sombra da mangueira, apesar dos esporões afiados próximos ao cangote. 

  

Não deu meio-dia e a mãe chamou o restante da família – pai e quatro filhos – para almoçar “galinha à cabidela”, eufemismo para descrever o resultado da covarde e premeditada execução da gordinha, que ademais fora cozida cruelmente no próprio sangue:

– Eu quero uma coxa! – antecipava-se a irmã mais velha.

– A titela é minha! – gritava o irmão do meio.

– Me dá o coração e a moela! – cobrava outro.

– Pelo visto, mulher, só vai sobrar ciscador, grade, mangote e sobrecu pra nós... – brincava o pai com a mãe, sem graça alguma para o guri.

 

Naquele ano, por coincidência, dois aviões haviam se chocado no céu do Ceará, deixando no ar um mistério que divide opiniões até os dias de hoje, mais de meio século depois: uns acreditam em conspiração seguida de assassinato; outros falam em mera fatalidade. A bordo de uma das aeronaves estava o marechal Castelo Branco, primeiro governante do regime militar, tido como alguém de perfil moderado nas Forças Armadas. Três anos antes, no discurso de posse, chegara a cogitar eleições para 1965. Havia deixado o poder justamente quando engrossava as canelas o grupo “linha dura” liderado por seu sucessor, general Costa e Silva, grupo esse que só largaria a cadeira, o carimbo e a caneta mais de 20 anos depois. 

 

Mas voltemos ao almoço. Ninguém percebeu a tristeza que tomou conta do guri. Sua família, alheia ao que se passava nas entranhas do submundo político-militar, estava feliz, de barriga cheia, assim como as criaturas sobreviventes do galinheiro, que não viam nada de mais naquilo que acontecia no quintal. "Tudo vale a pena se a ração não for pequena", deviam cacarejar entre si, porque embora fossem galinhas, adoravam a frase de Pessoa.

 

Um mês depois, bateu a murrinha (peste aviária) e dizimou todo o plantel, inclusive meia dúzia de pintinhos. Desconfiou-se – pura calúnia! – de que teria sido praga do guri, inconformado com a falta de compaixão e solidariedade entre as galinhas e com sua própria incapacidade de mudar o que via de errado no quintal de casa. 

quarta-feira, 11 de novembro de 2020

Recortes peludos

Tão esperada nas bancas quanto a revista Placar, Playboy era “a mais manuseada das revistas brasileiras”, segundo o escritor Humberto Werneck, autor da crônica “Leitores e vedores”. Foi ele, aliás, quem nos anos 1980 sugeriu aos assinantes de Playboy que se autorrotulassem de “vedores”, termo bem mais preciso do que “leitores”. 

A revista apareceu no Brasil em agosto de 1975 com o título Homem. Na época, a censura achou inadequado o nome Playboy por associá-lo a perversão e nudez. Quatro anos mais tarde, nos primeiros sintomas de distensão “lenta, gradual e segura” do penúltimo governo militar, a publicação conseguiu dobrar a censura e levou às bancas um ousado ensaio fotográfico com as playmates de sua versão norte-americana. Durou 40 anos, com 487 edições publicadas.

 

A verdade nua e crua de Playboy  com duplo sentido, claro– é que se via muito e se lia pouco. Na última década do século 20, ainda não havia a vulgaridade das imagens explícitas que hoje circulam nas mídias sociais. Os olhares entorpecidos de testosterona eram saciados por imagens de fotógrafos como J. R. Duran. 

 

Soube de um caso interessante envolvendo a revista, daqueles que as pessoas são capazes de jurar que não aconteceu, mas meu velho amigo Tony, a quem conheço desde que morei no Recife (lá se vão quase 25 anos), não tinha por que mentir para mim. 


Sujeito sério, hoje sessentão, fiel à mulher que só lobo cinzento ou coruja, Tony durante algum tempo foi “vedor” dissimulado de PlayboyE estava seguro de que convenceria Dagmar, sua esposa, baixinha tão sabida quanto desconfiada, de que a qualidade da revista – as matérias, os artigos, a entrevista bem ao estilo de O Pasquim, as charges etc. – justificava plenamente a assinatura que fizera.

 

De família grande, Tony era um pouco mais velho do que Lucão, seu irresistível irmão, também casado, mas que se pudesse escolher teria nascido no Oriente Médio e seria um príncipe devotado de corpo desalmado a três ou quatro mulheres não necessariamente submissas, às quais não deixaria nada faltar. Exigiria apenas convivência harmoniosa entre elas, dado que nunca soube lidar com conflito conjugal. 

 

O jeito de ser de Lucão provocava calafrios sem febre em suas cunhadas. Aos sábados então, quando bebia umas cervejas em família e desandava a repetir que seu "coração é grande e cabe mais de uma”, elas surtavam temendo contágio fraterno ou que a carga genética eventualmente se manifestasse nos respectivos maridos.

 

Apesar de tudo, o indômito Lucão era tido como bom filho, irmão, pai e tio, mas tão devasso que, ao ver o boom do fluxo turístico no Nordeste nos anos 1980, teve a desfaçatez de, à moda “Herva Doce” (com "h"mesmo!), publicar anúncio na Folha de São Paulo e no Correio Braziliense nessa linha“Moreno alto, bonito e sensual, posso ajudá-la na solução de seus problemas. Conheça as belezas de nosso paraíso com metade da despesa por minha conta. Cartas para caixa postal...” 

 

E pior que deu certo por algum tempo. Óbvio que isso ocorreu antes que o primeiro caso da epidemia de Aids fosse identificado numa sociedade que ainda relegava à mulher papel coadjuvante, voltado à gestão de um nada doce lar e à criação de filhos. Os movimentos mais vigorosos no sentido de mexer nesse cenário ainda eram incipientes. 

 


Em um domingo à noite, Lucão, de ressaca e pressionado pela filhota – cuja professora de um famoso colégio na capital pernambucana encomendara o dever de casa de fixar no caderno de desenho a imagem de um animal invertebrado –, recortou e colou uma caranguejeira peluda de origem cientificamente desconhecida na fauna tropical, porém comum nas páginas de Playboy

Antes de ir à escola no dia seguinte, a filha de Lucão, em sua inocência, toda orgulhosa acha de compartilhar com o tio Tony a "ajuda" que recebera do papai e que deveria entregar em mãos à professora. Passado o susto de arrepiar os pelos, o tio pôde auxiliar a sobrinha a refazer a tarefa com a imagem alternativa de um invertebrado e belo ouriço do mar.  

Pois foi justamente naquela semana que Dagmar, quando soube da molecagem do cunhado, decidiu recortar e jogar na lixeira todas as imagens com tarântulas peludas da edição mensal de Playboy que o carteiro entregara em sua casa

– Melhor que as crianças não vejam essas fotos, já que aquilo que interessa mesmo é o restante da revista, não é meu amor?”

– Claro... – admitiu Tony. 

 

"Mulher pequena é tinhosa, ainda mais com uma tesoura na mão", diria mais tarde meu velho amigo ao me contar o caso. 

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

E aí, Neguinho, sumido, hein?!

Na coleção O Mundo da Criança que havia na estante de livros lá de casa, minha irmã e eu, aos dez e nove anos de idade, um dia descobrimos e ficamos impressionados com uma lenda afro-cristã cuja origem remonta ao fim do século XIX. Foi muito popular entre os abolicionistas gaúchos que lutaram pelo fim do vexame da escravidão numa terra de dimensões continentais.

Dizia-se que um fazendeiro cruel com seus escravos e peões mandou que um menino negro vigiasse no pasto alguns cavalos que acabara de comprar. De tardezinha, faltava um animal. O patrão então pegou um chicote e deu uma surra tão dura na criança que feriu feio suas costas. E arrematou aos gritos: "Vai ter que achar o cavalo agora ou vai ver o que acontece!". 


Negrinho do Pastoreio


O menino então saiu à procura do animal. Algum tempo depois, encontrou-o num pasto nativo, laçou-o, mas a corda arrebentou e o bicho desapareceu de novo no meio da escuridão. De volta à fazenda, o dono, mais truculento que antes, bateu de novo na criança e a amarrou sobre um formigueiro. Quando amanheceu, ela estava gelada, com os olhos opacos, inerte. 

Mas, de repente, lá estava de pé, com a pele lisinha feito louça, sem as marcas das chibatadas que sofrera no dia anterior. À sua direita, a Virgem Maria; à esquerda, o cavalo fujão. O fazendeiro ajoelha-se arrependido, o menino se faz de mouco, beija a mão da santa e vai-se embora. 


Daquele dia em diante, andarilhos, bêbados, loucos espalharam pela região terem visto passar uma tropa de potros tocada por um moleque num cavalo de pelo castanho, crinas pretas e longas. Diziam que, se alguém perdesse alguma coisa, à noite o menino a encontrava, mas só devolvia a quem lhe trouxesse uma vela acesa, cuja luz levaria ao altar da santa que o livrara da escravidão. Nascia a lenda do Negrinho do Pastoreio.

Pois bem. Toda vez que perdíamos algum brinquedo, livro, caderno ou lápis, tanto minha irmã quanto eu acendíamos uma vela sobre a mesa da sala de jantar e implorávamos pela ajuda do Negrinho. E, verdade seja dita, ele nunca vacilou conosco, apesar da distância que separava o Sertão paraibano e o Pampa gaúcho dos anos 1960.

 

Havia, certamente, alguma influência daquilo que nosso pai escutava em sua radiola Teleunião, na voz de uma gauchinha arengueira que encantou uma das plateias mais exigentes do mundo  primeira brasileira a pisar no palco do Teatro Olympia de Paris – com a obra-prima de Edu Lobo e Guarnieri, ligada à história dos escravos e seus descendentes entre nós:

“Upa neguinho na estrada

Upa pra lá e pra cá

Vixi, que coisa mais linda

Upa neguinho começando a andar

Começando a andar, começando a andar

E já começa a apanhar...”

 

Não posso falar por minha irmã, mas, por mim, com o esfriar da inocência, fui deixando de lado aquelas promessas ingênuas e passei a aceitar melhor o dualismo da vida com seus planaltos e planícies, sua gaveta de achados e perdidos, depois que aprendi a mais básica das lições: uns dias chove; noutros, bate o sol.

 

Perdi muita coisa de lá para cá. Claro que não me refiro ao sumiço de amigos passageiros, à partida dos filhos da mesa em que almoçávamos ou à fita de chegada de uma corrida de obstáculos profissionais de mais de quatro décadas. Chega uma hora em que a gente se dá conta de que sofrer com o inevitável é mais uma perda: de tempo.  

 

Se aqui na terra ainda estivessem jogando futebol como antes. Mas não vejo novos pelés, tostões, rivellinos, zicos, falcões, reinaldos, romários ou ronaldos. Também já não ouço muito samba nem rock’n’roll. Onde em se plantando tudo dava, já não brotam mudas de chicos, claras, elises, paulinhos, rauls, ritas, tons ou vinícius.  

 

A coisa aqui está feia! É muita erva daninha infestando jardins, quintais, florestas e pantanais, inclusive algumas urtigas com suas togas encardidas e amarrotadas. Só o Negrinho do Pastoreio na causa! 

 

Mas não posso nem quero abusar da paciência de meu velho e caro amigo. Ele deve andar pelo pescoço com tantos pedidos. Daqui a pouco vão faltar velas até nas bodegas de ponta de rua desta terra de frustrações continentais.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Não ia dar certo, entende?

Na live “Pelé, 80 anos” apresentada outro dia pelo site UOL Esporte em homenagem ao aniversário do Rei do Futebol, o jornalista Cláudio Arreguy contou uma história deliciosa de como o mundo esportivo quase foi vítima do acaso e engrossaria o caldo das coisas que poderiam ter sido e não foram. 

 

Dizia ele que Dr. Prata, médico e pai do escritor Mário Prata, sugeriu a Dondinho, o pai de Pelé, que convencesse o filho a prestar concurso para o Banco do Brasil. “Futebol não dá futuro a ninguém! Bota o rapaz no Banco do Brasil que lá ele tem futuro garantido”. 

 


Apesar de a sugestão partir do único e respeitável médico da Bauru na metade da década de 1950, prevaleceu o saber popular: “Se conselho fosse bom...”. Note-se que, naquele tempo, não se imaginava que mais de meio século depois haveria “médico” aconselhando cloroquina para combater uma gripezinha sazonal. 

Posso até não discutir o estrago que o conselho do Dr. Prata a Dondinho, se acatado, causaria ao futebol mundial, mas me atrevo a imaginar o que teria acontecido ao cidadão Edson Arantes do Nascimento se tivesse obedecido a eventual orientação paterna. 


Com a bola que ele andava jogando, logo seria transferido para uma grande metrópole, passando a integrar o time de futebol de salão da AABB. E nos primeiros anos de banco não seria tão difícil obter uma licença especial para disputar jogos pela extinta CBD. Quem sabe até um publicitário condicionaria a liberação do atleta à exposição da marca da empresa na camisa canarinho, como ocorreria mais tarde envolvendo a CBV (vôlei), a partir das Olimpíadas 92, em Barcelona.  


Edson, porém, sabendo que a ação cruel do tempo sobre seus músculos e ossos uma hora decretaria o fim da carreira futebolística, cuidaria de preservar suas relações internas, admitindo até que alguns chefes dessem pitacos sobre sua conduta extra-banco. A empresa sempre teve seus sabichões das segundas-feiras que transitavam de teorias de Einstein sobre a interação entre espaço, tempo e gravidade, aos estudos sobre os múltiplos orgasmos de uma abelha-rainha.  

 

Por azar ou grande atuação de goleiros que jogavam contra a seleção brasileira, Edson deixaria de marcar alguns gols que certamente seriam incluídos entre os mais bonitos de sua jornada. Gols que não aconteceram, mas ficaram para sempre na memória dos amantes do esporte. 

Aos 29 anos e no auge de sua forma física, o funcionário do BB cedido à CBD viria a ser o grande protagonista brasileiro na Copa 1970, um autêntico “Nélson Mandela” a liderar a seleção na conquista de seu terceiro Mundial, que garantiu a posse em definitivo da taça Jules Rimet, roubada e derretida 13 anos depois, sinal claro de como o país cuida de sua história.

Na época, três goleiros passariam a ser conhecidos no mundo inteiro justamente por se envolverem – dois deles como coadjuvantes e o outro dividindo o papel de protagonista – em lances espetaculares de Edson, reconhecido mais tarde como o “Atleta do Século”.

Viktor, da antiga Tcheco-Eslováquia, quase levou um gol em um chute de Edson do campo de defesa brasileiro. O goleiro bem que tentou, mas não conseguiu fazer a defesa, e a bola passaria a poucos centímetros do ângulo de sua trave esquerda. Na manhã seguinte, imagino, um chefe de serviço qualquer ligaria para Edson: “Negão, vê se capricha na próxima e melhora o rendimento, tá legal?”

Mazurkiewicz, do Uruguai, tomou humilhante "drible da vaca" – também conhecido como “meia-lua”, “arrodeio” – na entrada da grande área. Mesmo desequilibrado, Edson ainda chutou cruzado, rente ao pé da trave direita, iludindo inclusive o zagueiro que tentava fazer a cobertura. Após a partida, creio, um gerente qualquer ligaria: “Você não tinha nada que enfeitar! Poderia ter feito o gol de fora da área, cobrindo o goleiro com uma cavadinha, sem frescura!”

Banks, da Inglaterra, por sua vez, defendeu uma cabeçada quase perfeita, interceptando em pleno ar uma bola que quicou antes, após um salto espetacular de Edson entre os zagueirões branquelos. Certamente um diretor qualquer do banco não perderia a oportunidade de cutucar o funcionário cedido: “Vacilou. Se tivesse cabeceado no contrapé do goleiro, no canto esquerdo, faria o gol...”

 

Logo depois Edson retomaria sua carreira bancária pressionado de tudo quanto era jeito – normas e rotinas de serviço desconhecidas, metas de vendas de produtos, avaliação de desempenho, colegas invejosos de suas tarefas extra-banco etc. Acabaria mais desorientado do que o goleiro italiano Albertosi, vítima de seu último gol em Copas do Mundo, na goleada de 4 a 1. 

De repente, Edson já não sorriria largo, leve, para os clientes. Nem veria graça num trabalho cheio de manuais de procedimentos. Teria medo de demonstrar insegurança ao prestar esclarecimentos e, quem sabe, suscitar dúvida em seu chefe imediato quanto à aptidão para a carreira. O que diriam Dondinho e Celeste se o filhão perdesse o emprego com futuro garantido de que falava o Dr. Prata?

 

Mas daria tudo certo. Se bem que Edson, que nunca vira motivos para denunciar os excessos da ditadura militar ou a existência de racismo no país, logo perceberia que metade da população brasileira é parda, mas isso nunca se refletiu nos quadros da empresa, circunstância que piora quando se fala da ocupação dos chamados cargos de confiança.

 

Hoje, oitentão, aposentado, Edson talvez refletisse sobre algumas questões para as quais não encontrou resposta no emprego com futuro garantido: por que nunca viu um presidente negro em tantos anos de carreira na empresa? E vice-presidente negro, por que só um em mais de dois séculos de história? 


Quem sabe até se perguntasse: e se ele, Edson, tivesse nascido em Dois Riachos, Sertão alagoano, fosse mulher, mestiça de caboclo com indígena, e se chamasse Marta, a história teria sido diferente? "Não ia dar certo, entende?", talvez dissesse.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Almas virtuais

Toda pessoa morre duas vezes. A primeira quando é sepultada (ou cremada) e a segunda quando seu nome é mencionado pela última vez. Poucas ficam na memória por séculos, como Cristo, da Vinci, Joana d’Arc, Beethoven, Newton, Darwin ou Madre Teresa de Calcutá. A maioria não resiste nem mesmo na lembrança de seus descendentes. Minto se disser que recordo o nome completo de minhas bisavós.


Na
 série de ficção científica Black Mirror, lançada há 10 anos, uma viúva faz contato com a versão virtual de seu falecido marido através de um serviço revolucionário. A aproximação começa com mensagens de texto, já que o sistema fora alimentado por uma base de dados (chats, e-mails, imagens, redes sociais etc.) sobre o comportamento do casal em suas interações enquanto ele ainda era vivo.

A partir de áudios e vídeos, o serviço consegue reproduzir vozes e a permitir entre eles o contato por celular (o "espelho negro"). Mais que isso, cria um andróide à semelhança do falecido que é capaz de interagir com a viúva em quase todos os sentidos, se é que me faço entender. 

Confesso que ultimamente ando tendo problemas em separar realidade de ficção, mas, no começo deste ano, me disseram que uma inspirada nordestina chamada Jurema, criada à base de tareco, macaxeira e mariola, hoje neuropsicóloga formada pela Universidade de São Paulo (USP), resolveu oferecer à humanidade um serviço bem parecido com o da série Black Mirror.  

Caboclinha de fibra, Jurema teria procurado um colega especialista em inteligência artificial da Universidade Stanford, nos Estados Unidos, para discutirem a viabilidade de seu projetoDepois de uma boa troca de argumentos, ela passou a desenvolver uma startup no Vale do Silício, no Norte da Califórnia. 

O objetivo é mapear a personalidade de uma pessoa falecida e transferir os achados para um computador, por meio de um software que simula as ações humanas repetidas de forma padronizada. O sistema deverá levar cerca de seis meses para levantar o histórico de alguém – informações do dia a dia, momentos marcantes, vacilos, memórias, manias e saberes –, da mais remota infância até o último suspiro. 

Da análise desses dados, a ferramenta vai conseguir o que se busca: o contato póstumo da melhor qualidade. Para Jurema, o resultado mesmo só virá daqui a quatro ou cinco anos, porque será preciso recriar a voz, a imagem e o jeitão de fazer escolhas da pessoa falecida nos seus mais sórdidos e  inconfessáveis detalhes. 

Enquanto trabalha a startup para chegar a esse estágio, a ilustre brasileirinha acredita que o primeiro protótipo, com lançamento a um grupo restrito de indivíduos previsto para o ano que vem, será capaz de gerar livros e filmes biográficos de 100 usuários que estão testando a novidade. 

Se tudo transcorrer dentro do esperado, a partir daí qualquer ser humano – não só ricos e poderosos como Steve Jobs, Angela Merkel, Oprah Winfrey ou Bill Gates – poderá legar uma biografia confiável, sem a interferência do dedo encardido do próprio ou de seus familiares. 

Isso vai permitir escalar o conhecimento de pessoas das mais diferentes áreas e realidades, desde, por exemplo, uma PhD vinculada à Harvard Medical School a uma professora de ensino fundamental no interior alagoano, que nunca se tornou famosa, mas que tem a contribuir com suas percepções e narrativas para melhoria do mundo.

É óbvio que nossa heroína tupiniquim sabe que grandes invenções, daquelas capazes de transformar a vida humana sobre a Terra, podem trazer fama e grana para inventores e algum futuro dentro de sua área de atuação. Ocorre que nem sempre o mundo muda para melhor. As alterações climáticas e as desigualdades sociais são evidências disso.   

Se hoje o termo “Nobel” é ligado ao prêmio que reconhece indiscutíveis avanços para os seres humanos, sua origem veio do sentimento de culpa que tomou conta de Alfred Nobel, depois que ficou rico por ter inventado a dinamite, em 1867. Tanto que, chamado de “mercador da guerra” por enriquecer com os conflitos entre homens e nações, deixou boa parte de seus bens para criar o instituto e o prêmio com seu nome.

Meu temor é que o genial invento da caboclinha Jurema dê sobrevida a algumas criaturas nefastas que rastejam por aí – para as quais, sem dúvida, morrer uma única vez é mais que suficiente – e isso impeça meus netos, enfim, de desfrutarem do país do futuro que me prometeram no tempo em que eu ainda morria de medo de almas na hora de dormir.

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Memórias de meu cárcere

Como não beber dessa bebida amarga? Parece fácil acordar às quatro e meia da madrugada e caminhar solitário no silêncio de meus barulhos, por uma hora, a tropeçar aqui e ali nas quinas que se metem no meu caminho entre a cozinha e a varanda onde o vento e os primeiros sinais de luz juram que a agonia vai passar. 


Parece simples trocar o noticiário da hora pelas canções de ontem, a engolir minha dose de alienação sobre o horror instalado no desmantelo da hora. Prefiro ouvir Simone cantar Aldir, a dizer que posso pegar aquele feijão preto, pôr meia dúzia de latas pra gelar e mudar a roupa de cama que tudo volta já.

Parece fácil preparar todo dia a própria comida sem despencar na rotina de sal, gordura e limão ou vinagre, no forno ou no fogão, depois de limpa a última ruga da folha de alface como se ali cochilasse o monstro insaciável que pode acabar com tudo em duas ou três semanas.


Faz de conta que é natural ver Magdala resignada, sem botar os pés na calçada há sete meses – nem mesmo para afogar nossos netos de abraços e beijos salgados de lágrimas –, a compartilhar o mesmo trajeto que fiz minutos antes para depois, na varanda, longe das franjas de espuma que escorrem na praia, pegar uma cor ou fazer um cabelo bonito pra eu notar. 

 
Ou vê-la disposta a dar uma geral, fazer um bom defumador, encher a casa de flor para, de tardezinha, os olhos boiarem diante da cena do filme que assistimos, ainda que a tecla pause nos conceda a trégua de poder ir ao banheiro lavar o rosto ou à cozinha em busca de uma fruta qualquer. 

 

Parece simples deixar a escuridão da caverna uma vez por semana, em liberdade provisória por meia hora, apenas para manter vivo o motor do carro, enquanto uns, de máscaras ou não, passeiam pelas ruas fingindo não sentir medo de ver emergir o monstro que engoliu mais de 150 mil irmãos.

 

Parece fácil ver tantas crianças fora da sala de aula, cujos pais, prisioneiros de suas próprias incertezas, não sabem como, sem os dilemas do convívio na escola, lhes ensinar os deveres de casa em matérias básicas como colaboração, generosidade, compaixão, resiliência e solidariedade. 

 

Ou ainda  em meio a tanta mentira, tanta força bruta nas redes antissociais! – deixar de ir à padaria, ao cinema, ao bar, ao supermercado ou ao restaurante, certo de que local onde se aglomeram incautos é praticamente impossível não haver um infectado sequer, ainda que sem sintomas.

 

Parece fácil, simples. Não é.

 

Ainda bem que posso me deitar mais cedo quase toda noite, não para dormir o sono represado dos madrugadores, mas para mergulhar nas águas de oceanos nada pacíficos já navegados por velhos lobos-do-mar como Braga, Cony, Ruy, Sabino, Ubaldo e Verissimo.  

 

Posso ainda, inspirado nas viagens desses marujos fabulosos, mesmo sem contato físico com o mundo lá fora, que já cheira de novo a fumaça de óleo diesel, escrever meia dúzia de palavras e queimar a paciência dos que ainda prestam atenção naquilo que tenho a dizer.

 

Sei que daqui a vinte anos talvez não me arrependa das coisas que fiz, mas estou seguro de que posso me arrepender das que deixei de fazer. Sei que, por vezes, optei por não mexer no roteiro do filme de minha vida, mesmo sabendo que ninguém descobre novos caminhos – apesar de Google Maps, Waze etc. – sem mudar de direção. 

 

De fato, talvez o mundo não seja pequeno nem seja a vida um fato consumado, como disse Chico. Enquanto não chega o habeas corpus que afastará de mim esse cárcere, preciso refletir sobre como pegar os novos ventos que sopram e velejar bem longe do meu porto seguro até descobrir onde tudo isso vai dar. 


Parece fácil, simples. É, parece...

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Entre compadres

A cumpadragem é coisa muito séria por aqui, como diz o poeta Jessier Quirino. Muito mais que o jeito pelo qual uma pessoa se torna aparentada de outra através do ritual católico do batismo, esse parentesco por afinidade chega a ser maior que laços de sangue porque compadre é escolha; parente, não.

Um caso sequer não me lembro de um amigo convidar outro para batizar o filho e o escolhido arranjar desculpa para escapar do compromisso, do tipo: “Não sei se vou estar na cidade no dia...” “Quem sabe é melhor você chamar alguém da família...” Se isso acontecer, a encrenca é feia. É desfeita a ser resolvida a murros e tabefes, com direito do ofendido de invocar a legítima defesa da honra.  


Chicó Neto e João Grilo Neto – descendentes dos andarilhos da Taperoá dos anos 1950, de "O Auto da Compadecida" –, amigos desde as primeiras letras e números, eram bancários, quarentões, além de compadres e vizinhos no bairro de Manaíra, na orla de João Pessoa, até o começo do ano passado. Tão unidos que, sem o menor pudor, um dia João bateu na porta de Chicó com um pedido de risco cabeludo:
– Cumpade, me empreste o seu carro novo. Preciso dar um pulinho em Campina Grande e o meu tá na oficina desde a semana passada.  
– Opa, cumpade, tá aqui a chave! Mas tenha cuidado, viu? Dei só a entrada e ainda nem paguei o seguro.
– Não se preocupe! Bem cedinho, devolvo lavado e de tanque cheio.

Tarde da noite, ao retornar, João notou que esquecera o controle remoto com que abriria o portão da garagem. Parou então numa vaga no estacionamento público em frente ao apartamento de Chicó, que a tudo assistia pela brecha da persiana. Foi só João apagar as luzes que Chicó desceu com a chave reserva e reposicionou o carro uns 200 metros adiante. No dia seguinte, João mal pulou da cama e já foi devolver o veículo. Quase infarta!
– Por Deus, cumpade, eu juro que deixei o carro bem aqui! – choramingava apontando a vaga com outro carro. 

Chicó, derretendo de rir, vibrava com o troco. Troco porque, quatro meses antes, viajara em férias com Ariana e Suassuna (esposa e filha) e ao compadre confiou as chaves do apartamento. Chicó é daqueles que guardam por décadas cópias de faturas quitadas de água, luz, gás etc. Morria de medo de vazamento de torneira ou descarga. Seu freezer, inclusive, um primor de organização: camarão, lagosta, peixe, tudo embalado com etiqueta identificadora. 

No primeiro sábado, João promoveu uma farra memorável com algumas amigas e amigos. Depois de beberem e fumarem de tudo, zeraram o estoque do freezer. E ainda tiveram o descaramento de substituir o conteúdo das embalagens por pedaços de macaxeira, batata-doce e rodelas de inhame. 

Ao retornar cheio de fatos, filmes e fotos, Chicó decidiu oferecer um jantar aos amigos, inclusive o compadre. Minutos antes dos convivas chegarem, surtou ao descobrir o que havia descongelado com todo cuidado:
– Mulher! O miserável ainda escreveu nos sacos:  Macaxeira ao thermidor, Batata-doce gratinada, Inhame em rodelas com alcaparras... 

Voltando ao ataque de pânico de João com o "sumiço" do carro novo do compadre, semanas depois Chicó e Ariana lhe fariam uma breve visita, levando a afilhada para pedir a benção do padrinho. João, que nunca foi de se preocupar com visitas inesperadas, improvisou o baião-de-dois com as sobras de carne-de-sol e feijão-de-corda do almoço, enquanto, na sala, Chicó amolecia o pescoço com uma cerveja gelada. 

Comida na mesa, João senta-se em frente ao amigo e sugere: 
– Afrouxe a gravata, cumpade, tire os sapatos... – os quais, sorrateiramente, seriam trocados por um par quase idêntico. Ocorre que Chicó calça 41 e João, 38. Quando, após o jantar, a bexiga obrigou Chicó a procurar o banheiro, os pés se recusaram a entrar nos sapatos. 
– Mulher, meus pés incharam! Acho que a bebida tá me fazendo mal...

E sem videogame para matar o tédio de criança nessas visitas, a afilhada, sem querer, azedou o baião-de-dois para quatro:
– Padrinho, por que o pessoal do prédio vive dizendo que sou a sua cara?
– Esse povo fala demais, filha...

Duas semanas adiante, João seria transferido para Recife, seguro de que lá teria melhores oportunidades de crescimento profissional. Como nunca gostou de despedidas, foi-se num piscar de olhos com a facilidade dos solteirões.  

Bem próximo ao Natal, Chicó e Ariana vão ao Recife e, por acaso, reencontram João numa mesa às margens do rio Capibaribe, tomando chope com frango à passarinho no bar O Santo e a Porca, que fica na Casa Forte, bairro de atmosfera bucólica na zona norte da capital pernambucana. 

Algumas tulipas depois, num daqueles silêncios que fazem parte de toda conversa entre velhos amigos e compadres, João confere (a incerteza é a mãe de todas as insônias):   
– Nem toda besteira pode tirar o sono e acabar uma cumpadragem séria como a nossa, né cumpade?
– É verdade... – consente Chicó.

Calada até ali, Ariana encosta a cabeça no peito do marido, boceja e arremata:
– Vamos? Tô morta...

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Confissões perigosas

Apesar de Trump, os Estados Unidos continuam sendo o principal destino dos brasileiros que vão morar fora do país, por conta de oportunidades de emprego, segurança, qualidade e estilo de vida. Um milhão e meio deles vivem por lá, dos quais metade em quatro estados: Flórida, Califórnia, Massachusetts e Nova Jersey.

Trezentos mil moram próximos a Boston, capital do estado de Massachusetts, em cidadezinhas como Everett e Framinnghan. É lá que vive há mais de uma década Valéria Sweet, uma mineira de Caratinga, dos cabelos cacheados, olhos pretos e miúdos, que criou um negócio interessante.  

Ela sabe que cada povo tem um jeito todo próprio de encarar a vida e de se relacionar com a morte. Aqui, por exemplo, afora Zeca Pagodinho e família, não é costume organizar uma reunião, com buffet e tudo, para receber as pessoas que forem ao enterro. No Brasil, os velórios, geralmente, acontecem na capela do cemitério e o tempo para preparação do corpo é de, no máximo, 24 horas após a morte. 

Dizem que esse período curto reflete a banalização do tema por essas bandas – escuta-se com frequência por aqui o clássico “morreu, morreu!” – e da pressa daqueles que não querem queimar vela com quem já não tem nada, nem votos, a oferecer. 

Valéria percebeu que nos Estados Unidos o buraco era mais acima, sem trocadilho. Na hora da despedida, parentes e amigos deixam no caixão objetos alusivos à relação com o falecido e valorizam homenagens como painéis de fotografias e vídeos do finado. Além disso, o corpo leva dias para ser preparado, à espera de quem vem de longe para se despedir. E há recepções na casa enlutada, com cardápio variado de pratos quentes e frios.  

A doce mineirinha trabalhava como cuidadora de um veterano de guerra portador de doença terminal. No fim de uma tarde, divagavam sobre a existência de vida após a morte quando veio o estalo:
– Eu gostaria de falar alguma coisa no meu funeral – dizia o moribundo.
– Como?
– Não sei...
– Bom, que tal escrever uma carta ou gravar um vídeo?
– Minha família... Alguns amigos não vão gostar do que tenho a dizer.
– Vai fazer diferença pro senhor?
– Nenhuma...
– Então me autorize, por escrito, a falar em seu nome.
– Promete fazer isso?
– Prometo! 


Ela agora vive a apartear discursos em funerais na condição de “confessora de leito de morte". Em dado momento das homenagens ao falecido, pede a palavra, abre um envelope e lê uma carta ou projeta um vídeo com aquilo que o morto não quis, não pôde ou não teve tempo de dizer em vida. 

Vale tudo: revelar segredos felpudos, mexer em testamento em cima da hora, exibir objetos perigosos, como pornografia, artefatos sexuais, e-mails, filmes, drogas, armas, dinheiro. Óbvio, Valéria cobra da pessoa moribunda, antecipadamente, três mil dólares pelo serviço a ser prestado. 

O trabalho mais complicado até agora foi quando contratada para divulgar uma confissão envolvendo o melhor amigo do defunto. Teve que pedir a palavra com mais veemência, caprichar no gestual e tornar público o que o falecido lhe autorizou revelar: que o amigo não o respeitara nem no leito de morte, apalpando as partes de sua mulher... Que a mulher só fingia certo desconforto com a apalpação, mas revirava os olhos, gemia, relaxava e, no fundo, gostava do que estava acontecendo. 

Após a fala, o bolinador de viúvas em andamento cuidou de escapulir do recinto pela porta dos fundos. Ele e a madame apalpada foram instados por amigos e familiares do morto a deixarem a cerimônia, em atenção a expresso e irrevogável desejo do confidente.

Valéria pensa em abrir uma representação em Brasília. Está segura de que existe aqui um filão generoso a ser explorado, mais rentável até que no Hemisfério Norte. A ideia, adaptada à índole tupiniquim, é ganhar dinheiro não pela revelação dos segredos, mas por abafar tudo o que for dito pelo moribundo. Óbvio, nunca terá problemas com o Código de Defesa do Consumidor. Àquela altura, quem poderia reclamar estará dormindo. Profundamente.  

Ela está de olho mesmo é nos ganhos provenientes do silêncio, com preço a combinar com algumas figuras carimbadas presentes nesses velórios. Pagamento, segundo a mineirinha, só em dinheiro vivo, com 10% de acréscimo para envolvidos em crimes de corrupção, peculato, prevaricação e/ou lavagem de dinheiro. Sem recibo, claro!

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Mestres por acaso

Jurandir nunca foi de rascunhar. Apenas franzia a testa, limpava os óculos, punha o papel na máquina e preparava cartas, memorandos e fichas cadastrais irretocáveis. Para mim, que aos vinte e poucos anos a tudo assistia com olhos e ouvidos abertos para o espetáculo de um novo mundo, aquilo explicava a correspondência regular que ele mantinha com um certo Drummond, como se fosse a coisa mais natural ser íntimo do itabirano autor de Poema de Sete Faces, mesmo vivendo a milhares de quilômetros.

Seis anos mais novo que eu, o filho de Jurandir (Jurandir Neto) nascera num 16 de setembro, mesma data em que veio ao mundo Rita de Cássia, herdeira de Maerbal. Vez por outra os pais lembravam essa coincidência cósmica que apertou ainda mais os cadarços da amizade que lhes unia.

Maerbal, por sinal, perito de balanços, conciliava o amor pelo ofício bancário com outra paixão bem resolvida: transmitir o que sabia a estudantes universitários, como eu, de contabilidade, economia e administração de empresas. Gostava também de velejar e, além de obcecado por música, até agora nutre a mania de adquirir relógios de parede em leilões virtuais só pelo deleite de ouvir a disputa sonora da marcação do tempo. 

Ayres completava o trio de mestres, todos eles, hoje, na casa dos 80. Não havia remédio que curasse a enxaqueca que lhe azedava o semblante quase sempre sereno. Amante de livros assim como de telas, pincéis e tintas, atuava como investigador de cadastro, tal como Jurandir. Dele os colegas diziam, não sem traços da boa inveja: um sujeito insaciável, bem-dotado, inclusive intelectualmente. 

Entre Jurandir, Maerbal e Ayres havia em comum a louvável capacidade de trabalhar pesado sem sufocar a leveza da amizade. E no setor de cadastro do Banco do Brasil daquela Maceió do começo da década de 1980, os três mestres acabariam protagonistas de um caso memorável.

Por curto período, Ayres fora designado para substituir interinamente o chefe do setor e, de brincadeira, fechou a cara ao avisar aos colegas: “Prestem bem atenção... A partir de amanhã eu exijo mais respeito e seriedade. Aproveitem a chance de trabalhar sob a liderança de um ‘superchefe’!”

No dia seguinte, Maerbal trouxe sua máquina fotográfica, a pretexto de registrar a presença de Ayres na cadeira do titular ausente. O “superchefe”, então, ajeitou os escassos fios de cabelos entre as orelhas e sorriu para a câmera. De molecagem, porém, Maerbal clicou-o do pescoço para baixo, cortando-lhe a cabeça. 

Revelada a fotografia dois dias depois – não parece, mas era assim que funcionava naquele tempo –, a brincadeira encheu o ambiente de graça e luz. E o dia ganharia ares poéticos quando Maerbal, em alusão à enxaqueca de Ayres, provocou Jurandir oferecendo-lhe o mote: “A cabeça a dor levou”.

Sentado à mesa, Jurandir dobrou ao meio uma folha de papel ofício, cobriu o rosto com a mão esquerda espalmada abaixo do nariz e, a lápis grafite, sem borracha ou rascunho, em minutos produziu com impecável caligrafia:

“Mareba,

Custou, mas como custou!
Quantos anos se passaram
E, ai de nós, não voltaram...
Custou, mas como custou!
Rita de Cássia cresceu
E um noivado apareceu,
Com ameaças de vovô...
Custou, mas como custou!
Te lembras, eu bem me lembro
Dos meados de setembro:
A dupla ao mundo chegou
Para curso dar ao vale
De lágrimas que é a vida.
Que esta lhes seja florida
E que outra boca não fale.
Só a que o Bem desejou.
Custou, mas como custou!
Mas o papel chega ao fim,
E o que se passou, passou...
Agora é cuidar, pois sim,
Desse fato inusitado:
O “super” guilhotinado...
Credo, cruz, Ave-Maria!
Parece feitiçaria!
Mas o perigo ficou
Se a de cima se mandou.
A outra – raro exemplar –
Essa a dor não quis levar!”
  
Não me custou nada – a não ser manter olhos e ouvidos limpos – aprender por acaso com aqueles mestres que, em qualquer parte do mundo, quando a gente escolhe um trabalho de que gosta, não tem que trabalhar nem um dia na vida.

Mundo, vasto mundo, tão vasto quanto o meu coração. Eu não devia contar, mas essa lua sobre a praia de Pajuçara, esse Cabernet Sauvignon, ainda me botam comovido pra danado.