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A falta que faz uma pomba

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Se você espera um texto sobre o luto de alguém, relacionado aos carnavais de outrora, sentindo a ausência de seu cobertor de orelhas "macetando" o apocalipse, bem, sugiro que ajuste seus óculos e prepare-se para uma reviravolta. Não é disso que pretendo falar nesta Quarta-feira de Cinzas.   Sábado retrasado, eu seguia pela orla da Pajuçara, de olho nos foliões que se arrumavam para homenagear o “Pinto da Madrugada”, bloco carnavalesco maceioense que acaba de completar 25 anos. Meu passeio me levou até o Memorial Teotônio Vilela, que mais parece uma ode à arquitetura de Niemeyer, com seu vitral patriótico e uma estátua do Menestrel das Alagoas em pleno ato de libertação de uma pomba, símbolo de sua batalha pela pacificação do Brasil após quase 20 anos de ditadura militar.    Esse gesto me fez lembrar da cantora Fafá de Belém, que, um ano após a morte do senador, em 1984, também soltou uma pomba que tinha nas mãos, no histórico comício pelas “Diretas Já”. Tempos duros em que a

E o livre-arbítrio, como fica?

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Dia desses eu conversava com um amigo baiano, escriba dos bons, que anda meio azedo por conta da dificuldade de encontrar quem goste de ler e escrever. Tem até opinião formada sobre a causa do problema: o ChatGPT! E desabafou, carregando nas tintas: “você sugere um tema qualquer e o computador cospe um texto mastigadinho, feito banana amassada com farelo de aveia. Tá virando drama inclusive para os mercadores de monografias, que estão perdendo a reserva de mercado". Tentei discordar, mas sem muita firmeza, apenas buscando esticar um papo que me dava retorno reflexivo: "Olhe só, o ChatGPT, assim como a maioria das inovações tecnológicas, veio apenas para facilitar a vida no vale de lágrimas. O problema é a preguiça generalizada, que tem sido a mãe de quase todas as invenções. Até pensar agora é serviço terceirizado. O xis da questão é como usar a ferramenta, para o bem ou para o mal. E essa história de 'livre-arbítrio' é igual a democracia perfeita: é bonita no papel,

A flauta que fez

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Para celebrar o centenário de Altamiro Carrilho (1924 – 2012), o gênio da flauta transversal, a Casa do Choro, no Rio de Janeiro, está lançando um site com o acervo particular do músico, doado pela família à instituição.  São gravações, manuscritos, partituras, fotografias, troféus e objetos pessoais, catalogados pelo pesquisador Tomaz Retz, agora ao alcance dos fãs do mais antigo gênero de música popular urbana do Brasil: o choro. Reprodução/YouTube Que manhã inesquecível em 1998, no Recife, aquela sexta-feira em que conheci Altamiro Carrilho! De noite, ele se apresentaria para convidados do Banco do Brasil na cobertura do prédio onde a Avenida Rio Branco cruza com o Cais do Apolo. Um lugar iluminado, à beira-rio.   Altamiro, com mais de 100 discos, fitas, CDs e sei lá mais o que gravados em 60 anos de carreira, dois anos antes havia participado do  Projeto Tom Brasil . Uma ação de marketing cultural que reuniu uma seleção de craques da música instrumental brasileira, incluindo Armand

Coisa para poucos

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Ultimamente, minha maior aflição tem sido a hora de ir para a cama. Mas antes que alguém insinue que isso tem a ver com a proximidade de meus 66 anos, adianto que são as dores lombares as verdadeiras vilãs dessa novela.  Ilustração: ChatGPT Quase todo dia, às quatro da madrugada, minhas costas recusam qualquer tipo de colchão, por mais confortável que seja. Só aceitam de bom grado as curvas de uma rede pendurada na varanda, que se torna o refúgio perfeito, numa afronta à lógica e ao senso comum.   Costas, aliás, que se fazem de míopes quando saio para a caminhada matinal, diante de tantas criaturas que dormem ao relento na dureza de papelões estendidos em bancos e nas calçadas, vencidas pelas desigualdades que as ruas escancaram, ainda que a brisa morna queira adocicar a cena.    Costas que reconhecem, inclusive, que na lista das melhores coisas para se fazer nessa vida, duas dependem de um bom local para se deitar. A segunda é dormir, esse deleite ainda isento de impostos, tarifas e t

Sábios populares

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Deus é testemunha de que não sou de ostentar, não quero ser metido,  mas sou nordestino, filho de maranhense casado com paraibana (que um dia me levaram, ainda menino, para viver em Alagoas), de quem herdei a pitada cigana que me deu a graça de ainda virar pernambucano e baiano, mais adiante, antes de mergulhar de cabeça no caldeirão cultural brasiliense.    Nessas andanças todas, colecionei alguns achados incomuns – ditos populares, provérbios e outras expressões sábias que nem o Aurélio, o Houaiss ou o Michaelis explicam. Cada um mais original que o outro, anotados ao longo de décadas de ouvido atento.   O linguajar falado no Nordeste tem seu charme único, diferente do resto do Brasil, mas o português continua sendo o fio desencapado que nos une como nação.  Nem sou especialista no riscado, mas estou seguro de que essas tiradas linguísticas são a pimenta e o sal que temperam a comunicação de nossa gente.   Vou listar aqui algumas pepitas raras que recolhi na grande viagem e guardei n

Azar de quem não crê!

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Sim, existem histórias tão surreais que parece que são inventadas. Como a de Manezinho, um menino cabeçudo, dentuço, míope, cerca de 12 anos de idade, que apareceu no começo do ano passado, sem documentos,  vagando pelas ruas do Pontal da Barra, no entorno da lagoa Mundaú, na capital alagoana.   Meses depois, sofreria uma cirurgia para ressecção de um tumor cerebral. E o vidro da porta da sala cirúrgica ficou repleto de curiosos, todos querendo vê-lo falar enquanto era operado. Muitos, inclusive, diante do que ouviam, achavam que o caso se agravava com o correr dos minutos.    “Eu sou minha imaginação e meu lápis – dizia ele em voz alta no leito cirúrgico, ora mirando os médicos, ora a plateia sob espanto –. “Quando o lápis acerta um erro, ele percebe e grita por uma borracha... Desaprender oito horas por dia ensina os princípios... Minha imaginação não tem estrada. E eu não gosto mesmo da estrada. Gosto do desvio...”    Orientado pelo neurocirurgião, o menino matraqueva sem parar dura

Aonde iremos?

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Diz o escritor Ruy Castro que frases feitas são aquelas que entram por um ouvido e saem pelo outro sem um estágio intermediário no cérebro. Mesmo assim, anote aí: tudo evolui na natureza. Tirando, claro, certas figuras que conhecemos.  Nós, humanos, não somos exceção – ainda que alguns dos nossos hábitos façam pensar o contrário. Depois de milênios, aqui estamos, bem diferentes de nossos tataravós. Não só demos uns pulinhos na árvore genealógica, acompanhando gorilas e chimpanzés, mas também nos empoleiramos, com todo o nosso charme, no topo da cadeia alimentar. Se nossa memória fosse um pouco melhor, talvez nos lembrássemos daquele dia em que descemos das árvores para dar uma voltinha no chão. Ficamos de pé, esticamos as pernas, encolhemos os braços e, ao longo da jornada (obrigado, fogo, roda e bússola!), nosso cérebro sofreu um  upgrade  que faria qualquer  software  de última geração corar de inveja. O resultado? Um salto enorme em aprendizagem e socialização. Avançamos tanto que c

Existirmos: a que será que se destina?

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Fruto da saudade que sente de um grande amigo, Caetano Veloso há quase meio século questiona o propósito da vida logo no primeiro verso de sua marcante canção "Cajuína".   Agora, aos 81 anos, anuncia que vai tirar um período de “férias radicais". Uma pausa para descansar, por prazo indeterminado, após uma série de três shows na Bahia que fizeram parte da turnê "Meu Coco".   Pede a "amigos, colegas, conhecidos e desconhecidos" que não o incomodem. “...Não me convidem para atividades públicas, participações, conceder entrevistas ou emitir opiniões, gravar vídeos, escrever releases e outros textos ou qualquer outra atividade, sobretudo àqueles que sabem que mais me tocariam com seus chamados…”.   Milton Nascimento, também aos 81 anos, tem aproveitado “radicalmente” sua aposentadoria dos palcos para ver televisão, encontrar amigos e viajar. Fez a última turnê da carreira em novembro do ano passado e, desde então, vive noutro ritmo, sendo descrito por seu

Bolachas e marmotas

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Todos os anos, pertinho do Natal, eu esperava na estação ferroviária o som do apito e o facho de luz que trariam  minha avó materna, a quem chamava de Mãe (diferente de mamãe) porque ela nunca quis o prenome de “vovó”. Ficava por duas ou três semanas no Sertão paraibano, longe do sítio onde vivia, no Brejo, a duas léguas e meia de Itabaiana, onde nasci.   Ela chegava com o coração dividido, não entre a esperança e a razão, como na canção  Borbulhas de Amor , cuja versão brasileira recebeu letra de Ferreira Gullar e imortalizada na voz de Fagner. Dividida, isto sim, entre matar a saudade da filha e dos netos e deixar para trás seu primo e marido, meu avô, que não arredava o pé do chão onde nascera por nada no mundo.    Devia lhe doer também afastar-se do ti-ti-ti (espécie de aboio para galináceos) com que espalhava milho e xerém ao redor da casinha de chão batido. Ainda era tempo de galinhas, pintos e pardais, de verde nos quintais, em que havia frutos num pomar qualquer de se tirar do

Certas perguntas

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  “Atenção, tripulação, preparar para o pouso!”. Mais uma vez, acordo com este velho anúncio, vindo da cabine de comando do avião que iniciava a manobra de aterrisagem.   Volta e meia querem saber de mim como alguém  que nasceu na Paraíba, foi criado em Alagoas, morou em Pernambuco e na Bahia, gosta tanto de Brasília.  Digo que não sei. É o tipo de questionamento que pressupõe que as pessoas costumam se sentir mais felizes quando moram perto do mar, com o benefício da umidade e de alguns espaços associados ao prazer e à preguiça.  Certas perguntas não devem ser feitas! Sobrevoando Brasília, essa miragem de curvas, retas e mistérios  debaixo do céu do Cerrado, volto sem gravata, paletó nem sapatos, para fazer o que mais gosto ultimamente: nada, exceto contar histórias, tateando na nebulosa fronteira entre o testemunho e a fantasia.   “Meu Deus, mas que cidade linda!”, cantava Renato Russo em sua épica “Faroeste Caboclo”, quando aqui cheguei pela primeira vez, em 1981, para participar po

Novas noites tropicais

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Há 20 anos, quando li  “Noites Tropicais – solos, improvisos e memórias musicais” , obra do jornalista, compositor e escritor Nelson Motta, fiquei só imaginando como teria acontecido um duelo doido, emocionante e técnico, no Festival de Jazz de Montreux, na França, em 1979. Bem depois pude ver as imagens, com a criação da plataforma de vídeos YouTube.   A gaúcha Elis Regina era a grande estrela da “Nuit brésilienne”. Ao lado do maestro paulista César Camargo Mariano e de um grupo de músicos, ela montou sua apresentação com grandes sucessos, embora quase nada de cunho político e, apenas por conta da exigência dos organizadores do festival, um pouco de Bossa Nova (a sua voz forte não batia com cantar baixinho e suave do movimento criado pelo baiano João Gilberto).      Hermeto Paschoal, alagoano de Lagoa da Canoa, arranjador e multi-instrumentista reconhecido nos meios jazzísticos até por Miles Davis (um dos mais influentes músicos do século XX), fez a abertura do evento. E arregaçou: fo