abril 02, 2025

Drink do Corno Feliz

Foi maravilhoso revisitar a Bahia semana passada! Na minha faixa etária, pouco acima da “meia-idade”, já vi muita coisa, mas ainda me surpreendo. Como, por exemplo, um homem traído que resolveu transformar o próprio infortúnio em um bar de sucesso: o Drink do Corno Feliz.  




Agora me digam: o que se faz ao descobrir uma traição? Uns choram, outros quebram copos e pratos, alguns tentam afogar as mágoas em abraços alternativos.

 

João Augusto, baiano de Morro de São Paulo, escolheu um caminho insólito: abriu um bar. E não qualquer boteco, mas um ponto turístico batizado com precisão cirúrgica.

 

O bar, que já soma mais de uma década de sucesso, nasceu da dor, cresceu na resignação e amadurece sob o sol de Tinharé.

— Muita gente destrói a vida por causa de uma traição. Precisamos brincar mais com isso. A vida continua... — ensina João.

 

Talvez, ainda menino, ele tenha escutado na vitrola do pai Juca Chaves  o “Menestrel Maldito” apelidado por Vinicius de Moraes — e aprendido, desde cedo, a rir das próprias desgraças, como nestes versos:

“Eu tenho chifre mas não tenho queixa

Se bem que a testa fique bem maior

Até que é bom quando a mulher nos deixa

A gente sempre arruma outra melhor.”

 

E segue o refrão:

“Essa é a vida que eu sempre quis

Eu sou cornudo, mas eu sou feliz...”

 

A traição veio em 2016, encerrando um relacionamento de 16 anos. João vagou pelas ruas de Morro de São Paulo com o mundo escorregando sob os pés — orgulho ferido, raiva contida, e a sensação de que só ele não sabia.

 

Por dias, perambulou feito zumbi, o amargo colado na garganta. Foi nesse estado que, certa tarde, escutou um grupo de turistas reclamando da falta de um bom drink diante do pôr do sol. Um deles brincou:

— Rapaz, se eu levo um chifre num lugar desses, pelo menos queria uma caipirinha pra descer redondo.

 

A frase pairou como revelação de boteco: nada divino, mas uma ideia luminosa — dessas que chegam com gelo, limão e timing perfeito.

 

Dali pro negócio foi um pulo. Comprou alguns ingredientes, uma caixa térmica e improvisou um letreiro de madeira: Drink do Corno Feliz.

 

Afinal, se a dor é inevitável, que ao menos gere fluxo de caixa positivo.

 

A prefeitura torceu o nariz, burocratas fingiram não ver — talvez já calejados de tantos chifres próprios —, mas João não esmoreceu. Limpou o mirante, ergueu sua modesta estrutura e, em pouco tempo, o bar se tornou uma referência local.

 

Turistas e moradores começaram a procurá-lo não apenas pela vista, mas para brindar ao inevitável: o chifre pode alcançar qualquer um.

 

Supõe-se que os primeiros clientes chegaram movidos pelo humor. Mas a curiosidade venceu o constrangimento, e João logo percebeu que o bar era mais que ponto turístico: virou santuário dos cornos anônimos.

 

Entre uma caipirinha e outra, confissões surgiam como desabafo de penitentes: o marido que caiu nos braços da madrinha de casamento, a missionária que era amante do "irmão" de igreja, o sujeito que percebeu que o filho do vizinho se parecia mais com ele do que o próprio filho biológico.

 

O apelido "Corno Feliz" colou de vez, e João, longe de se incomodar, o adotou com gosto.

 

Hoje, desfila pelo bar com um chapéu de palha de onde brotam chifres vistosos, feito um viking tropical — ou um Dom Quixote que fez as pazes com seus moinhos —, e uma frase de efeito para cada situação.

 

Se o cliente reclama do preço da caipirinha, ele rebate:

— Chifre é de graça, mas caipirinha tem custo.

Se alguém hesita em pedir um drink, encabulado com o nome do bar, ele pondera:

— Se chegou até aqui, já pode brindar.

E quando perguntam se já superou a traição, apenas sorri e aponta para a placa.

 

Nelson Rodrigues, outro que entendia como poucos das agruras do coração, dizia que "amar é ser fiel a quem te trai". Provocador, né? Sugere algo quase insuportável: um amor que resiste ao que deveria matá-lo. 


Mas talvez ele só quisesse dizer que fidelidade diz mais sobre quem leva o chifre do que sobre quem o aplica. O traidor pode ser canalha, distraído ou apenas um desavisado tropeçando na própria libido.


Já o traído... ah, esse ganha um certo status: vira patrimônio emocional tombado — digno de abraço carinhoso, conselho gratuito e, às vezes, até de uma rodada de caipirinha.

 

Vai ver João Augusto entendeu, lá do alto do mirante, que se a vida dá chifres, que venham com limão, açúcar, gelo e uma boa cachaça.

 

E que rendam mais que um relacionamento amoroso — de preferência, livres de mágoas, de impostos e com vista pro mar.

março 26, 2025

Bastidores picantes de uma noite brasiliense

Há quase meio século, o Brasil balançava ao ritmo da novela global Dancin’ Days. No embalo, Brasília viu brotar danceterias como a Machine, no Venâncio 2000, e a New Aquarius, no Conic — a primeira boate gay da cidade. Mais adiante, brilharia a lendária Zoom, no Lago Sul, inaugurada sob os holofotes de Pelé, Xuxa, Luiza Brunet e outros astros cintilantes.


Era uma festa de máscaras. Políticos, lobistas e engravatados de sobriedade elástica e ética flexível se esbaldavam sem medo de estampar folhas do Correio Braziliense ou as manchetes do Jornal Nacional.

 

Enquanto isso, em outro salão — os corredores de uma estatal poderosa — dançava-se uma coreografia bem menos vistosa, mas não menos animada. A criação de delegacias estaduais transformara a Capital numa pista burocrática. 

 

Reuniões semestrais garantiam à turma do alto escalão distância conjugal conveniente e noites bem mais agitadas que qualquer planejamento de metas — o que, convenhamos, nem é grande vantagem.

 

Diferentemente dos políticos, os burocratas seguiam fora da mira da imprensa, que preferia garimpar escândalos sob luzes mais precárias.

 

Foi numa dessas reuniões no Setor Hoteleiro que o chefe Donald — nome fictício, naturalmente — liberou os delegados estaduais para conhecerem a noite brasiliense. Grupos se formaram e partiram para destinos variados. Entre eles, Huguinho, Zezinho e Luisinho — chamemos assim, por razões óbvias.

 

Reprodução: Redes Sociais/Walt Disney's Comic and Stories


O trio desembarcou na Zoom, onde luxo e luxúria andavam de mãos entrelaçadas. Naquela pista, os Metralhas e Maga Patolójika podiam discutir contratos milionários à margem da lei, entre generosos goles de uísque, e minutos depois serem flagrados pelo espelho aos beijos com “colegas de labuta” — sempre “colegas”, claro.

 

Zezinho, animado além da conta e convencido de sua irresistível virilidade, decidiu incendiar a noite. Cutucava beldades, apalpava o colo alheio sem cerimônia, urinava onde e quando não devia, transitando perigosamente entre o glamour e o vexame —pendendo, como era de se esperar, para o último.

 

Huguinho e Luisinho tentaram contê-lo. Em vão. Chateados com a teimosia etílica do companheiro, decidiram ensiná-lo a pegar leve.


Huguinho, ainda com traços de bom senso, pulou fora quando percebeu a crueldade do plano. Já Luisinho, veterano em trotes corporativos, seguiu adiante.

 

Na volta ao hotel, cuidou pessoalmente do translado do colega desacordado. E, com a precisão de um atirador de elite, armou a peça. Com a ajuda da camareira, preparou uma mistura de claras de ovos, gotas de limão e um toque de pimenta malagueta — receita infalível para reações adversas. Em seguida, despejou o líquido na parte traseira da cueca de Zezinho. 

 

Ao despertar, ainda grogue, Zezinho foi informado de que perdera o controle e acabara a noite no piso frio do banheiro, onde fora encontrado balbuciando palavras ininteligíveis. Tentou rir, nervoso, mas uma sensação de incêndio na retaguarda logo lhe roubou a graça.

 

O rastro pegajoso, viscoso como um escândalo mal abafado, selou o pânico na alma e na cueca de ZezinhoSem raciocinar, ele correu até Tio Patinhas — todo-poderoso da organização e seu protetor — e, entre gaguejos e lágrimas, denunciou um atentado desonroso e suspeito.

 

Chamaram médicos. Fizeram exames. Cogitaram tudo: de abuso a espionagem, passando por tentativa de desestabilizar a República. Espantado com o desenrolar dos fatos, Luisinho não resistiu: confessou o "crime".

 

Em reunião de emergência, determinaram o afastamento sumário do brincalhão e instauraram uma sindicância para avaliar, inclusive, a sua demissão por justa causa — artigo raro nas estatais, onde a máxima costuma ser: “errar é humano, punir é desumano!”. 

 

Para evitar um escândalo de proporções sísmicas, fizeram o que sempre se faz nesses casos: tentaram abafar e torcer para que a fumaça se dissipasse.

 

Mas, como todo segredo corporativo, a história vazou pelos corredores e ganhou o mundo em versões cada vez mais pitorescas, garantindo a Zezinho uma coleção de apelidos sugestivos: Capitão Cueca, Fire Tail, Peido Picante, Zezinho Leite Moça e por aí afora. 

 

Seis semanas depois, a sindicância foi arquivada — entenderam que não houve má-fé, apenas "excesso de confiança na intimidade entre colegas". Chefe Donald se aposentou antes que o samba descambasse. Huguinho sumiu no mundo, cedido a um cargo diplomático. Zezinho foi promovido e seguiu vida afora fingindo que os apelidos não eram com ele. E Luisinho... ah, o indefectível Luisinho! Perdoado pelo Tio Patinhas, não só escapou da degola como herdou o trono do chefe Donald.

 

Com o tempo, a ressaca passou. Mas a história — picante e salgada — entrou para o folclore das noites brasilienses, lembrando que, por essas bandas, a conta da farra quase sempre arde onde menos se espera.

março 19, 2025

Trocando em miúdos (até o rim)

Poucas cenas me entristecem tanto quanto o crepúsculo de uma relação amorosa. Pior quando envolve amigos queridos — aqueles que, mesmo a gente sabendo dos perrengues conjugais, torce para que entrem de novo em sintonia e sigam de mãos dadas até o fim da estrada, mesmo de bengalas.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


Volta e meia me lembro de uma interpretação antológica de Elis Regina para Atrás da Porta (Quando olhaste bem nos olhos meus / E o teu olhar era de adeus...), de Chico Buarque e Francis Hime. Foi em outubro de 1980, no programa Grandes Nomes, da Rede Globo, sob as ruínas de seu casamento, Elis foi tão visceral que, no fim, desabou em lágrimas.


Só faltou a voz de fundo de Vinicius de Moraes com o Soneto da Fidelidade, contando da mortalidade e da natureza efêmera da vida, ensinando que o amor pode não ser imortal, “posto que é chama”, mas que seja “infinito enquanto dure”.


Outra memória vem de 1979. Parece de um tempo ainda mais remoto — um museu de costumes extintos, com cheiro de cigarro, poltrona de veludo, radiola e vinil. Aconteceu há 45 anos, mas poderia ter sido há uma década. Só que o espírito da coisa é vintage: analógico até na dor.


O divórcio, na época objeto de grande polêmica religiosa, havia sido instituído recentemente. No seriado Malu MulherPedro Henrique (Dênis Carvalho), diante da prateleira de LPs, escuta o veredito de Malu (Regina Duarte): “Os discos de Bethânia são todos meus.” Era o fim do amor dividido em faixas de vinil.


A cena tinha aquele ar solene de inventário sentimental. E não existia metáfora melhor para dividir os escombros de um amor do que repartir a trilha sonora que o embalou. Hoje, a logística do coração perdeu parte do charme: a discografia inteira de uma relação cabe num pendrive ou numa playlist que se pode deletar com um ou dois cliques. Sem agulhas, sem faixas riscadas, sem drama.


O mundo gira e, junto com os discos, até a saideira — aquele improvável arremate de beijos e carícias — também saiu de catálogo. Dá pra imaginar diálogos que nunca mais serão ouvidos:
— Fico com os de Elis e Gal. Você sempre foi mais Bethânia...
Ou o atestado definitivo de que já não existe mais nada:
— Por que tá levando o Acabou Chorare?
— Foi presente de Dia dos Namorados, lembra?!
— Pois é, mas se eu soubesse que a gente ia se separar, te dava um Fábio Jr.


Se antes os discos serviam como álibi para o desfecho de um caso, hoje a falta de objetos de valor estimativo para dividir parece ter transformado o fim do amor num jogo sem regras. Não basta mais decidir quem fica com os LPs de Chico Buarque — tem gente querendo de volta até o que não se pode tocar.


Se antes só se brigava por discos, cartas e fotos, agora o amor parece se desfazer em downloads e devoluções mais inusitadas. E assim chegamos ao caso de Richard Batista, médico de Long Island, nos Estados Unidos, que levou o “Trocando em miúdos” — o hino buarqueano da separação — ao pé da letra.


Segundo o New York Post, quando a esposa, Dominic Barbara, precisou de um rim, ele não titubeou: doou. Só não contava que o casamento não sobreviveria ao transplante. Recuperada, Dominic resolveu engatar uma amizade — digamos, reconfortante demais — com o fisioterapeuta. Richard, traído, pediu o divórcio e, de quebra, exigiu o rim de volta ou uma indenização de US$ 1,5 milhão.


A Justiça negou o pedido, alegando que órgãos não entram na partilha de bens. O rim agora era dela, ponto final. E, convenhamos, arrancar o órgão para devolução soaria um tanto medieval.


Ainda bem que Chico e Francis nunca imaginaram algo parecido nos anos 1970. Do contrário, no sarapatel de sentimentos envolvendo coração, fígado e rins, a letra de Trocando em Miúdos poderia terminar com um pragmático:
“Fico com o disco do Pixinguinha, sim
Mas se eu soubesse que tudo terminaria assim
Doaria só metade do rim...”


Se a moda pega, logo vai ter gente exigindo de volta não só os discos, mas abraços, beijos, carícias e até os “eu te amo” cheios de desejo sussurrados ao pé do ouvido. E, claro, tudo corrigido pela inflação.


E não duvidem: daqui a pouco, os casais talvez nem precisem mais de advogados. Bastará um aplicativo para calcular a depreciação emocional do relacionamento, reaver arquivos sentimentais deletados e, quem sabe, propor a devolução parcelada de orgasmos não compartilhados. No fim, o amor, que um dia foi eterno enquanto durou, será só mais um contrato com cláusula de rescisão automática, garantia estendida contra danos afetivos e indenização proporcional ao tempo desperdiçado.

março 12, 2025

Fugindo pro inferno


Um cinegrafista que capturava imagens do fundo do mar nunca imaginou que seu grande momento de fama viria com um peixe que, ironicamente, passou a vida fugindo dos holofotes. Pois foi exatamente isso que aconteceu recentemente, quando pesquisadores da ONG Condrik Tenerife avistaram um espécime do temido Melanocetus johnsonii  o peixe-diabo-negro  nadando em águas rasas, nas Ilhas Canárias.

O evento, sem precedentes, foi recebido com a seriedade típica dos fóruns de internet: teorias conspiratórias brotaram como larvas de mosquito-da-dengue em pneus descartados nos lixões.


Foto: Reprodução / Divulgação / ONG Condrik Tenerife / Perfil Brasil

— Se esse bicho subiu, é porque algo terrível está para acontecer — decretou um profeta do apocalipse digital.
— Concordo! Se ele apareceu, é porque o inferno lá embaixo ficou pior — sentenciou outro, com uma lógica digna de reunião corporativa na véspera do Carnaval. 

Os vídeos do bicho feio viralizaram, e foi aí que a coisa descambou de vez. Bastou alguém lembrar que um abalo sísmico chacoalhou o Caribe dias depois, e pronto: estava estabelecida a conexão telepática entre peixes das profundezas e placas tectônicas. Para os especialistas das redes sociais, o fim do mundo começara com um peixe-diabólico que se cansou do anonimato. 

Um amigo meu, cronista bissexto e cearense, me enviou o link da notícia com um comentário provocativo:

— Tá aí, cara, até o diabo, quando menos se espera, busca a luz...

Pensei em responder com um emoji apreensivo, mas antes que eu apertasse o botão, outra mensagem pipocou na tela: a capa da Forbes. A manchete destacava um primata descascando sua banana ao lado de uma reflexão indigesta:

"Se um macaco acumulasse mais bananas do que pudesse comer, enquanto os outros morressem de fome, os cientistas tentariam entender o que há de errado com ele. Mas quando um humano faz isso, o colocamos na capa da Forbes."

A conexão foi instantânea. Talvez o peixe-diabo-negro tenha subido porque percebeu que o verdadeiro inferno não era lá embaixo. De repente, olhou para o andar de cima e viu um czar branco deportando imigrantes como se fossem bagagens extraviadas, magnatas monopolizando logaritmos e CEOs erguendo impérios sobre vales de lágrimas e miséria. Sem alternativas, nadou em direção ao sol, na esperança de encontrar dias ruins, mas pelo menos iluminados.


Os cientistas logo trataram de oferecer uma explicação mais racional:

— Provavelmente estava doente — apontou um biólogo da UFMG.
— Não há evidências de que seja presságio de tsunami — garantiu outro.


Também destacaram um detalhe biológico: era uma fêmea — sim, uma fêmea! — e sua bioluminescência a diferenciava dos machos da espécie, que, numa reviravolta evolutiva, vivem como meros apêndices grudados ao corpo delas.


No fim, o peixe diabólico não resistiu. A pressão atmosférica lhe foi fatal, e seu corpo foi recolhido pelo Museu de Natureza e Arqueologia de Tenerife. Enquanto isso, no abismo, seus familiares talvez se perguntem se ela fugiu para curtir o Caribe com uma garoupa ou um robalo. Tudo é possível nos dias de hoje.


No fundo — no fundo mesmo — talvez tenha sido melhor assim. Se tivesse sobrevivido, logo seria convidado para dar palestras sobre resiliência em eventos corporativos, patrocinados por fintechs que prometem democratizar investimentos enquanto cobram taxas que fariam um tubarão corar.

Aliás, não duvido que algum guru da autoajuda já tenha transformado essa breve incursão à superfície em um novo best-seller: "A luz que há no abismo: lições de superação de um peixe que desafiou seu destino". Com direito a TED Talk e legendas motivacionais em posts do LinkedIn.

Por via das dúvidas, se algum dia eu estiver aqui, relaxando nas águas mornas da Enseada da Ponta Verde, em Maceió, e encontrar um bicho feio desses nadando na vertical, não vou me preocupar com sinais apocalípticos. Provavelmente, só se cansou da escuridão e resolveu tentar a vida de coach no Nordeste.

Neste mundo onde qualquer um pode virar influencer, o inferno já não precisa de chamas. Ele se ilumina com flashes, números inflados e promessas vazias. Ou, quem sabe, o peixe só tenha entendido antes de nós que o verdadeiro abismo não está nas profundezas do oceano, mas na superfície — onde o monstro da ambição engole tudo o que vê pela frente. Mais do que qualquer criatura das trevas.

 

março 05, 2025

Startup da paixão

Vejam vocês como é a vida. Soube de um jovem casal que trocou as juras de amor por reuniões de trabalho em home office. Ele, CFO das finanças domésticas. Ela, CEO das operações logísticas. No início, tudo era promissor: lua de mel, investimentos em viagens e jantares românticos, projeção de lucro afetivo a médio prazo. Mas, com o tempo, a rotina engoliu os dividendos da paixão, o negócio esfriou e o desejo – esse acionista inquieto – ameaça vender sua participação.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


A internet, esse oráculo do século, ensina que casamento já foi apenas um contrato de conveniência: comida na mesa, herdeiros e disposição para tocar o projeto, na saúde e na doença... O amor veio depois, quando Freud abriu a caixa-preta das angústias humanas e as relações deixaram de ser apenas uma questão de sobrevivência. Mas a régua subiu: além de fiel, um parceiro precisa ser engraçado, sensível, sexy – e, de preferência, não esquecer a toalha molhada na cama.

 

O problema é que esse negócio afetivo desanda sem inovação. Entre boletos, reuniões e dilemas gastronômicos (“carne ou peixe? pizza ou sushi?”), a fantasia do relacionamento apaixonado mofa no fundo do armário, junto com as roupas que um dia serviram. 


Conversar, dizem os especialistas no assunto, os casais conversam. Oito horas por semana, em média. Mas boa parte desse tempo se perde na planilha invisível das obrigações: quem lavou mais louça, quem recolheu o lixo, quem varreu a sala... E, na dúvida entre dar atenção à cara-metade ou ao cachorro, um terço opta pelo óbvio – afinal, cachorro nunca late um “a gente precisa conversar!”.

 

O saldo dessa encrenca? Um cheque especial de afetos no vermelho. Um reclama do colesterol, o outro do preço do café. Um lembra da conta de luz, o outro das marcas do amor que sumiram dos lençóis. E a matemática do desejo é ingrata: para cada desentendimento, garantem os entendidos, são necessárias cinco interações positivas. Mas quem tem tempo para isso, quando a Netflix recomenda uma nova série imperdível?

 

Então o desejo faz o quê? Troca de roupa e vai dar uma voltinha. Foge para grupos de caminhadas ou pedais, botecos da moda ou, pior, para o conforto anestésico do celular. Nada disso é um desastre – toda individualidade precisa de espaço, claro. O problema é quando o casamento vira apenas um projeto de estabilidade, um arquivo de rancores que se acumulam como mensagens não lidas. E daí, para o desinteresse mútuo, é um pulo.

  

Desejo e novidade são crias da mesma costela, se bem que muitos casais insistem nas mesmas viagens, nos mesmos restaurantes, nos mesmos pijamas esburacados, como se nunca tivessem ouvido o alerta de Chico Buarque: “Todo dia ela faz tudo sempre igual, me sacode às seis horas da manhã…” Depois, estranham quando a chama vira brasa e a brasa, cinza.

 

Não sou consultor de crises sentimentais, mas talvez funcione parar de esperar que o desejo caia do céu como um passe de mágica. Criar momentos sutis. Abrir um vinho ou preparar um risoto, um espaguete. Sussurrar (ou escrever) algo bonito quando o outro menos espera. Reservar meia hora por semana sem ser mãe ou pai – apenas amante, em estado positivo e operante.

 

Porque desejo não é boleto em débito automático. Se um espera pelo outro e o outro aguarda um milagre dos céus, a relação vira reunião de condomínio, onde todo mundo dá pitaco, mas ninguém quer ser síndico. E o desejo também precisa de espaço. Mais do que isso, de treino. Ninguém corre maratona sem preparo ou mantém o tesão sem prática. É como dizia meu avô: “se não arejar a terra, a espiga de milho vem rala”.

 

Se o negócio está mais para planilha do que para poesia, passou da hora de um “reboot”. De fechar as abas mentais e atualizar o sistema. Criar um protocolo de emergência antes que o desejo venda a sua participação e, pior, reinvista no concorrente.

 

Porque a coisa deixou de ser contrato de longo prazo com cláusula de estabilidade. Virou uma startup volátil, arriscada, que exige inovação constante. Se ninguém tomar a frente, o desejo faz o que sempre fez: abre o capital, procura um sócio mais arrojado e se desfaz da sociedade. E aí, nem adianta mais apelar para consultoria. Romance sem investimento quebra – por falência múltipla dos pequenos gestos que sustentam qualquer relação.

O mercado não chora. O amor, sim. Se nada for feito, o desejo segue a lógica do capital: busca novas apostas. E quando menos se espera, já não existe doce lar, mas um espaço para alugar. Um cheiro que ficou no travesseiro. Uma canção que machuca. Sem dó.

 

fevereiro 26, 2025

Segue o jogo...

Nesta quarta-feira, 26, celebro 67 fevereiros, início de uma nova página na minha existência. Uns dirão: “um menino, ainda!”, enquanto outros, com os pés fincados na realidade, comentam: “descendo a ladeira, hein?!” Millôr Fernandes diria: “Qualquer idiota consegue ser jovem. É preciso talento pra envelhecer.”

Alguns me perguntam: por que escrevo? Escrevo porque preciso conversar com amigos e amigas, mesmo que virtualmente, e deixar rastros de momentos em que pensei, senti e vivi com intensidade. E você? Já refletiu sobre o que tem deixado de si?


Ilustração: Álbum de família


Em 1970, em Maceió, ao lado do meu irmão Agostinho – ou Nena, pois minha língua não acertava “nenê” –, antes de brincar com as palavras, mergulhávamos numa outra arte: fabricar botões para o futebol de mesa. Nossa alquimia usava ingredientes simples e, ainda assim, perigosamente poéticos. Numa panelinha de leite em pó, untada com sabão, misturávamos pedaços de plástico rígido – tampas de remédio, retalhos de cano, lanternas quebradas – e, sob o fogo tênue de uma lamparina, o ordinário se transformava em pura magia. Depois, políamos com folhas de cajueiro bravo e, com flanela e fragmentos moídos de azulejos, fazíamos brilhar o que fora descartado.

Antes dessa alquimia, em União dos Palmares, experimentamos uma breve temporada dos botões de quengo de coco, logo após a fase passarinheira em que engaiolávamos canários, curiós e galos-de-campina, como se a beleza e o canto pudessem ser aprisionados. Depois surgiram os botões de capas de relógio e de acrílico – o mítico “vidro inquebrável”, que parecia imune ao tempo.

Aprendemos juntos, então, que viver é um eterno aprender e desaprender. Hoje, duvido que ousássemos arrancar um pedaço daquela janela de acrílico rachada do ônibus da linha Ponta da Terra – Ponta Grossa, desembarcando às pressas, sem pagar passagem, mesmo com o passe estudantil amassado no bolso.

Nem com uma serra de canos nos atreveríamos a recortar quadradinhos, arredondar as quinas do batente do quintal e, entre dois discos meticulosamente alinhados, fixar a foto de um craque recortada da “Placar” – um batismo laico de ídolos. Quem não se lembra do número 10 dos grandes clubes – Pelé, Tostão, Rivellino, Ademir da Guia? Em seguida, Zico e Roberto Dinamite inaugurariam uma nova era, enquanto nós, artesãos do futebol de mesa, lutávamos para tornar o “10” o adversário mais temido. Com palheta ou pente em punho, olhar fixo e respiração contida, alertávamos: “Coloque-se!” E, em resposta, o adversário implorava aos deuses do futebol que seu goleiro – uma caixa de fósforos recheada com grãos de chumbo – evitasse o gol.

“Dez segundos pra acabar... Último chute!”, avisava o árbitro imaginário. E o mundo aguardava o apito final.

Às quartas-feiras, nossa rotina nos levava ao mercado público da Levada, onde comprávamos carnes, frutas e raízes, movidos pelo desejo quase sagrado de garantir a nova edição da “Placar”. Da lista de compras, separávamos o trocado que sustentava nossa dose semanal de futebol impresso. Nossa mãe, imersa no desafio de cuidar de nove filhos, não notava o pequeno confisco; enquanto nosso pai, com olhar cúmplice, compartilhava o entusiasmo silencioso pela leitura.

O cheiro da revista ainda pulsa em nossas narinas, evocando não só uma revista, mas o elo que unia os rachas nos campinhos, as noites de domingo diante da TV esperando os gols do final de semana e as épicas disputas de botão.

Numa dessas idas ao mercado, um camelô, com sua banca improvisada, revelou-nos um segredo quase mágico: bastava espalhar, com um chumaço de algodão, uma mistura de álcool e gasolina sobre uma folha de papel para que as imagens da “Placar” se transformassem num passe de encantamento. Assim nasceram nossos jornais – eu editava o “Destaque”, que apenas Nena lia; ele, o “Jortebol”, exclusivo para mim.

Nena tornou-se um fanático são-paulino, embalado pelo bicampeonato paulista de 1970-71, enquanto eu, contagiado pelo entusiasmo do nosso pai e pelo título carioca do Vasco, forjava minha seleção com Buglê, Valfrido e Silva. As partidas eram intensas e, logo, a guerra de narrativas se instaurava: cada um redigia sua versão do jogo, alinhando à régua as notícias escritas com esferográfica, enquanto as imagens da “Placar” serviam de pano de fundo. O resultado era o mesmo, mas os fatos se desdobravam em três versões: a minha, a dele e a verdadeira.

O tempo passou. Mudamos e o mundo se transformou. Não nos tornamos escritores, jornalistas ou “game designers” (ainda nem existiam Microsoft, PlayStation ou Xbox). Viramos bancários, como nosso pai. Aprendemos que cada escolha traz ganhos e perdas – e que, enquanto o apito final não soa, o jogo continua. 

Hoje, aos 67 anos, sigo em campo. Já marquei gols, perdi pênaltis, ganhei abraços e levei pontapés, mas a bola ainda rola nos gramados da vida. E, quem sabe, o próximo chute, a dez segundos do fim, seja o mais memorável de todos. Coloque-se! – porque o jogo ainda não acabou.

fevereiro 19, 2025

Irmãos de além-mar


Quase toda noite, eles brilham sobre as águas da Baía de Todos-os-Santos. Jorge Amado e Dorival Caymmi são irmãos na amizade e na fé nos orixás. Seus talentos se entrelaçaram como raízes fincadas no coração da Bahia, gerando romances e canções que traduzem a essência da terra afro-brasileira.




Reprodução/Acervo da Fundaçao Jorge Amado

O destino os separou algumas vezes. Ora exilado por questões políticas, ora perambulando por razões profissionais, Jorge vagou pelo mundo durante certo tempo, enquanto Caymmi, no Brasil, curtia a saudade que um dia traria o amigo de volta. 

 

Um dia, em 1976, enquanto escrevia “Tieta do Agreste”, lançado no ano seguinte, Jorge recebeu em Londres uma famosa carta, que, resumidamente, dizia:

 

Jorge, meu irmão…

    Terminei de compor uma linda canção pra Iemanjá, inspirada no reflexo do sol na Pedra da Sereia. Nem sei quantas já compus pra Janaína. Stela talvez saiba, essa mulher é um milagre. Manda beijos pra Zélia. Eu, saudade. Quando vierem, tragam um pano africano bonito. Quero um blusão de respeito.

    Ontem, Carybé e eu encontramos Camafeu na Rampa do Mercado. Sentimos cheiros, vimos cores, contamos quinze tons de azul e um ocre de arrepiar. Fiz um quadro: baiana, tabuleiro, gente em volta. Simples, mas bonito que só. Carybé ficou mordido. Se eu tivesse tempo, virava pintor e ganhava uma fortuna. Mas cadê tempo? Tenho que visitar dona Menininha, saudar Xangô, ouvir Carybé mentir, andar à toa e fazer nada. Isso me toma o dia inteiro.

    A Bahia segue viva. No Axé, Stela de Oxóssi agora é iyalorixá. Perguntaram por você na festa: "Cadê Obá Arolu que não veio ver sua irmã rainha?" Saí pra te procurar, mas não te achei. Que fazes tão longe se teu lugar é aqui? Londres, Jorge? Me diga: o que foste buscar aí? A lua daqui é que é a lua.

    Vendi a casa da Pedra da Sereia. Construíram um edifício horroroso e botaram meu nome nele. Fiquei retado e me mudei pra Pituba. Agora sou vizinho de James e João Ubaldo. Mundo virado, hein? Mas antes da mudança, fiz outra pra Iemanjá. Sempre Bahia, sempre o mar, sempre mulher. E sempre Stela, minha eterna musa, com quem me casei tendo você como padrinho.

    A bênção, padrinho. Oxóssi te proteja por essas inglaterras. Um beijo pra Zélia. Tragam meu pano africano e voltem logo. Aqui é tua casa, e eu sou teu irmão... Caymmi.


 

Ninguém garante que Jorge respondeu, mas, recorro a fragmentos de sua vasta obra e tomo a liberdade de imaginar algo nesta linha:

 

Caymmi, querido amigo.

    Volto, sim. Não hoje, nem amanhã, que exílio tem lá suas vantagens, mas volto. Voltar sempre foi o destino dos que partem e o consolo dos que ficam. E se a Bahia segue viva, como dizes, é porque nela há o mar, o dendê, a fé e amigos como tu, que sabem contar os tons de azul como ninguém neste mundo.

    Tu me contas que compuseste outra canção pra Iemanjá. Claro que ficou linda, como todas as tuas, porque tua música, meu irmão, não é feita só de notas, mas de alma, de cheiro de maresia e da boa preguiça – aquela que transforma o tempo em contemplação.

    Aqui, deste lado do oceano, penso em nossa terra e na sina de quem nela nasce sem sobrenome. O Brasil, meu velho, visto daqui ou daí, segue como sempre: grande demais pro bolso do povo, pequeno o suficiente pra caber nos caprichos de uns poucos. Mas deixa isso pra lá, que o dendê e a pimenta ainda temperam a resistência, e a fé segue viva entre os que contam estrelas na beira do cais. Já pensaste na sorte? Tanta miséria e, ainda assim, sobra poesia até nas curvas dos acarajés abaulados.

    Quero mais é saber de ti, da casa nova na Pituba e de teus vizinhos. James, João Ubaldo… Olha só, virou quarteirão de colhudos! E eu aqui, do outro lado do Atlântico, sem um cantinho quente pra repousar as palavras.

    Zélia manda beijos. Diz que sente falta dos dias em que Stela ensinava os segredos do candomblé. Já eu, meu caro, sinto falta do Axé, de Mãe Menininha, das noites na Ladeira da Montanha e das manhãs de ressaca no Mercado Modelo. E de ti, claro, que nunca te cansas de olhar o mar e fazer cantigas de ninar.

    Ah, sim, levarei teu pano africano. Escolhi um de azul profundo, quase negro, da cor dos mistérios de que somos feitos. Logo estarei de volta pra entregá-lo em mãos e brindar contigo ao que nunca muda: a Bahia, o mar, as mulheres e a nossa amizade.

    De teu irmão, Jorge.

 


Agora, quando anoitece e a lua dança sobre a Baía de Todos-os-Santos, há quem diga que os dois velhos amigos-irmãos ainda trocam cartas de luz. O mar, cúmplice a vida toda, leva as palavras e guarda os segredos. O resto, Caymmi canta e Jorge conta. 

fevereiro 12, 2025

Pano de fundo: o fim do papel?

Esqueça tudo que você sabe sobre papel higiênico. O futuro (ou seria o passado?) reserva algo inesperado e preocupante para o seu banheiro.

 

Nada como um bom e confiável rolo de papel, macio e reconfortante, não é? Um marco civilizatório definitivo, separando o primitivismo da dignidade moderna. Mas, em tempos em que até a roda anda ansiosa com tanta reinvenção, surge uma nova tendência nas redes sociais: substituir o papel por panos reutilizáveis. Sim, panos. Aqueles de enxugar louça ou do lavabo agora podem ganhar status de item sanitário premium.

Reprodução/TikTok


 

Esta semana, uma família de seis pessoas viralizou no TikTok ao compartilhar sua experiência com essa alternativa. Jazmine, a matriarca da resistência ao papel higiênico, explicou que a decisão foi motivada pelo desejo de levar uma vida mais sustentável. Assim, cada membro da família tem seu kit de paninhos, que usa, lava e reutiliza. Tudo armazenado numa cesta, como quem organiza calcinhas, cuecas, meias ou pães caseiros. Um verdadeiro enxoval de alta costura para o momento mais íntimo após o café da manhã.

 

Os adeptos defendem que os panos preservam o meio ambiente e o bolso, reduzindo o desmatamento e o consumo de celulose. No entanto, a adesão à prática exige planejamento e uma rotina impecável de lavagens – afinal, ninguém quer errar na cor do pano e pegar um que já tenha antecedentes pastosos.

 

Os céticos, por sua vez, argumentam que trocar o rolo pelo retalho pode ser um convite ao caos doméstico, trazendo dúvidas acerca da higiene, logística e, principalmente, sobre aquele momento emergencial onde ninguém tem a mínima condição de esticar a conversa sobre os impactos ambientais da própria evacuação. Mas Jazmine rebate, segura de sua contribuição à posteridade: há panos de tamanhos diferentes para diferentes situações, como quem fala de um jogo de cama de luxo. E a lavagem frequente? Fundamental! Afinal, não se trata de um revezamento olímpico de dejetos humanos.

 

A polêmica reacendeu velhos métodos de higiene. Se você não sabe, antes da era dourada do papel higiênico, o ser humano já havia dado seus pulos criativos. Os romanos, por exemplo, usavam um tersorium – uma esponja presa a um cabo, mergulhada em água salgada ou vinagre. Isso nos banheiros públicos, onde podiam trocar ideias e especular sobre a vida alheia enquanto faziam o descarte orgânico. Já os vikings tinham uma abordagem, digamos, mais colaborativa: em terra, lã de ovelha resolvia o problema; no mar, uma corda pendurada para fora do barco cumpria a função – usada coletivamente, diga-se de passagem, numa folia de coliformes benzida pela boa vontade das ondas.

 

Os esquimós, acostumados ao frio polar, tinham uma solução gelada: neve. E os colonos americanos do século XVII? Espigas de milho – às vezes inteiras, às vezes só a palha ou o sabugo. No Japão antigo, um gomo de bambu prestava o serviço, limpando por dentro e por fora. Serviço completo.

 

Se existissem redes sociais na Idade Média, certamente teríamos posts entusiasmados sobre a melhor textura para um galho seco, um sabugo de milho ou um gomo de bambu.

 

A verdade é que a civilização tentou de tudo antes de inventar o rolo de papel higiênico. Meu amigo Arnaud, falecido no início dos anos 1990, defendia inclusive a ducha e sabonete, aliado ao papel. Dizia ele, entre goles e reflexões etílicas: “Experimenta passar um pouco de titica no braço e limpar só com papel, depois cheira e vê se está limpo mesmo!”. Pois é, nem tudo se resolve no seco.

 

Se você está tentado a aderir ao movimento dos panos, vá em frente. Mas lembre-se: a modernidade trouxe algumas conquistas que merecem ser protegidas com unhas, dentes e, sobretudo, um rolo de papel sempre ao alcance das mãos. O banheiro continuará sendo um espaço também reservado a leitura e reflexões filosóficas, porém ninguém deseja voltar ao tempo dos romanos e compartilhar uma esponja suspeita.

 

Mas quem sou eu para julgar esses novos (ou velhos) costumes? Se a moda pega, talvez o futuro reserve banheiros high-tech onde um braço robótico estenda um pano de microfibra e um algoritmo avalie a “eficiência do serviço”. No fundo, sem trocadilho, tudo se resume à ilusão de progresso – e ao eterno dilema de como sair limpo dessa história. O que importa não é o método, mas a garantia de que ninguém precise dar uma segunda checada pelo olfato.

 

E que ninguém invente o "desafio do pano comunitário". Aí sim, talvez decretemos estado de calamidade pública: a humanidade vai precisar ser passada a limpo.


 

fevereiro 05, 2025

Anália, o banco e o bordel

Há coisa de quatro décadas, numa das regiões mais desiguais do Planeta, uma mulher chamada Anália – não aquela de Caymmi, que não foi para Maracangalha; mas outra – ousou negociar com o maior banco local e, com inteligência e sagacidade, deixou uma lição inesquecível sobre moralidade e poder.


Proprietária da boate “Naná Drinks”, ela enfrentava dificuldades financeiras quando propôs o parcelamento de suas dívidas, que somavam cerca de 4 milhões da moeda da época. Um perito foi designado para avaliar sua capacidade de pagamento e elaborou um relatório que se tornaria lendário – não pelos números, mas pelas descrições tão vívidas que quase fizeram os funcionários do banco se engasgarem de rir.

 

Um dos chefões, no entanto, considerou o relatório “incompatível com o linguajar polido e a sobriedade da Casa”. Mas a questão crucial permanecia sem resposta: Anália teria ou não condições de pagar?



Ilustração: Uilson Morais (Umor)



A “Naná Drinks”, eufemismo para suavizar expressões menos diplomáticas como bordel, cabaré ou rendez-vous, ocupava um antigo prédio de alvenaria com sete cômodos, afastado da zona oficial de prostituição. A proprietária liderava “um plantel” de seis jovens entre 18 e 21 anos que cumpriam uma jornada de trabalho ditada pela demanda. “Toda hora é hora, todo dia é dia”, registrou o perito, com um toque irônico.

 

Segundo ainda o perito, os frequentadores eram figuras influentes da região e visitantes ocasionais, atraídos não só pela localização estratégica – distante 20 km do centro da cidade, à margem da rodovia federal –, mas também pelo prestígio do estabelecimento. E não apenas isso, supõe-se. O faturamento impressionava: o rendimento mensal ultrapassava 1,2 milhão, com uma margem líquida de cerca de 400 mil após o pagamento de despesas como aluguel, água e energia, além das tarifas dos “serviços prestados pelas meninas”.

 

Apesar dos números, o histórico de Anália preocupava. Sua imagem junto ao banco não era tão boa quanto a que desfrutava no ramo explorado. As dívidas vinham de financiamentos rurais subsidiados para plantio de arroz, milho e mandioca – valores desviados para um “negócio mais lucrativo”: a boate que deu origem à “Naná Drinks”, inicialmente instalada nos arredores de um povoado próximo. Percebendo o movimento fraco naquela localidade, Anália transferiu a “operação” para a cidade onde estava sua agência bancária, um mercado em “franca evolução”.

 

O laudo do perito concluía que Anália, agora bem mais estruturada, poderia quitar suas dívidas sem os riscos de adversidades climáticas inerentes à região. Mas o chefão que torceu o nariz para o relatório, zelando pela imagem do banco (ou a própria, talvez), negou o parcelamento e encaminhou o caso para a Justiça – caminho que só agrada mesmo advogados e meirinhos.

 

Mas Anália não era mulher de aceitar um “não” sem luta. Dias depois, foi pessoalmente ao banco. O chefão, acomodado em sua poltrona de couro, tragou o cigarro sem pressa, como quem saboreia o prazer de negar: 

– Agora, a senhora deve procurar seus direitos na forma da lei. 

– Claro, senhor, mas podemos conversar olho no olho? Só um minutinho... 

– Tudo bem, mas só decidimos com base em fatos e documentos…

 

Com um gesto descuidadamente teatral, Anália abriu a bolsa e deixou algumas fotos caírem no chão, entre cartões, chaves e cheques. O chefão, intrigado, arregalou os olhos ao ver nas imagens figuras conhecidas. Entre elas, ele próprio, bem acompanhado, nu cintura acima, segurando um copo de uísque.

– O que diabo é isso? – gaguejou, sentindo o chão lhe faltar. 

– Ah, me desculpe, senhor. São recordações dos clientes da “Naná Drinks”. Um jornalista quer fazer uma reportagem sobre nossa boate e devo me encontrar com ele daqui a pouco...

 

O silêncio pesou. O chefão, antes tão seguro, agachou-se para recolher as fotos com mãos trêmulas. Conferia uma a uma, como se pudesse apagá-las apenas olhando:

– Veja como são as coisas… Como somos irresponsáveis depois de algumas doses, hein?! 

– Se o senhor quiser, pode ficar com elas. Nem se preocupe com os negativos, eles estão bem guardados no meu cofre.

 

O chefão ajeitou o colarinho e, sem encarar Anália diretamente, abreviou a conversa: 

– Bem… Podemos rever a decisão. Tudo dentro das normas, é claro!

 

Meia hora depois, Anália tinha em mãos o novo contrato, assinado, e uma lição a ser compartilhada com suas colegas de trabalho sobre hipocrisia e moralidade seletiva: certos homens só enxergam aquilo que ameaça a seriedade que fingem ostentar. E no mundo dos que pregam a virtude, o verdadeiro poder está com quem conhece as regras – e ousa usá-las a seu favor. 

 

Os tempos mudaram, mas a essência humana, não. Anália saiu satisfeita. Na porta do banco, respirou fundo, ajeitou o vestido e sorriu. No teatro da moralidade, afinal, quem manda não é quem veste terno e gravata, mas quem conhece os bastidores.

janeiro 29, 2025

O silêncio entre notas e palavras

Esta semana, revisitando as memórias de um verão distante, bateu de novo aquela inveja artística ao ouvir “Luiza”, de Tom Jobim, e “Carolina”, de Chico Buarque. Não a inveja mesquinha, mas a admiração inquieta, quase resignada, por não encontrar resposta para uma pergunta que me persegue: por que nunca criei algo tão arrebatador? Algo capaz de fazer alguém fechar os olhos e balançar devagar numa rede, como fazia meu tio Enoch na varanda de sua casa na tórrida Caxias (MA), embalado pela poesia de “Marina”, de Caymmi.


Ilustração: Uilson Morais (Umor)


Talvez o que mais me fascine na música seja justamente o que ela não diz, mas insinua. O silêncio que cochila entre as notas é o mesmo que encorpa as palavras na escrita – um espaço onde a imaginação encontra abrigo e as emoções criam raízes.  

 

Mas a realidade é dura. Nunca compus nada que chegasse perto de uma canção. Para ser justo comigo mesmo, talvez isso se deva ao fato de ser praticamente nula minha relação com instrumentos musicais. Nem pandeiro, nem reco-reco, nem sequer um tamborim. É como se as notas me evitassem, conspirando para preservar o silêncio absoluto na partitura da minha vida.

 

O que me consola é saber que figuras como Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini também nunca tocaram um instrumento. Adoniran, o mestre das crônicas cantadas, não precisou dedilhar um violão para criar "Saudosa Maloca" ou "Trem das Onze". E Vanzolini? O silêncio das madrugadas paulistanas bastou para transformar em poesia os dramas urbanos de "Ronda" e "Volta por Cima". 


Talvez porque eles, geniais que eram, soubessem que o extraordinário é feito do corriqueiro, como a grama seca que rebrota sem barulho ao primeiro chuvisco. Eu, sempre obcecado por algo maior, ignoro que o sublime, tantas vezes, se camufla no simples – no rangido do armador de uma rede na varanda ou no chiado de um velho disco de vinil. Não é a falta de talento que me paralisa, é minha mania de desprezar o que já está ao meu alcance, em busca de um horizonte inalcançável.


Lembro do álbum duplo "Há sempre um nome de mulher", uma homenagem a figuras femininas fictícias e inesquecíveis. Era janeiro de 1988 quando dei esta obra de presente ao tio Enoch. Comovido, ele a recebeu com a gratidão que só a música inspira. Mais do que uma celebração às mulheres, era um tributo ao talento incomparável de Caymmi, Chico e Tom – compositores que encontraram na música um caminho para a eternidade. 


E é essa eternidade que me fascina e me tortura ao mesmo tempo. "Luiza", com sua letra carregada de imagens poéticas, como o “raio de Sol nos teus cabelos” que explode em “sete cores”. Talvez o que a torne tão inesquecível não seja apenas a beleza das metáforas, mas a habilidade do autor em transformar uma saudade comum em algo extraordinário. E "Carolina", com seus olhos fundos que guardam “a dor de todo este mundo”, imóvel sob uma árvore melancólica enquanto tudo gira ao seu redor? É a glória eterna em forma de melodia.


Essas canções têm algo em comum: são histórias que transcendem o papel e a melodia, alcançando uma universalidade que eu, apenas um presumido cronista, só posso invejar. Mas sem desistir, que fique claro!


Talvez o meu maior obstáculo, repito, seja a incapacidade de aceitar o simples. Perseguindo o inalcançável, esqueço que o sublime não se escreve – ele se sente. Mas, se dizem que os sonhos nunca envelhecem, a luta continua.


Se bem que ontem, enquanto ouvia "Luz do Sol" ("Que a folha traga e traduz em verde novo em folha...”), de Caetano Velloso, e "Aquarela" (..."O futuro é uma astronave que tentamos pilotar, não tem tempo, nem piedade, nem tem hora de chegar..."), de Toquinho, quase me convenço de uma vez por todas de que minha missão não é compor, mas traduzir o que a música deixa em nós. Porque o silêncio não é vazio. É nele que as notas se preparam para nascer e onde as lembranças se aninham.


Se nunca conseguir criar algo que habite o espaço invisível entre as notas, que minhas crônicas, ao menos, sejam capazes de revelar o silêncio cheio de sentidos que a música deixa em nós. Porque é nesse vazio que os verões renascem, as saudades despertam, e o eterno nos apanha, desprevenidos.

O silêncio das tartarugas

O medo da insignificância social tem um papel decisivo na vida do ser humano. Na metade dos anos 1980, eu já acumulava mais de uma década de...